A dor: da magia, ao soar do sino e às terapias modernas

Nas civilizações antigas, a dor era associada ao misticismo, à presença de demônios. Por isso mesmo, seu alívio era uma responsabilidade de feiticeiros e sacerdotes, que recorriam à ritos, procedimentos com caráter cerimonial e ao uso de plantas para livrar os que sofriam desse mal.
Para Aristóteles e Platão, tanto a dor quanto o prazer eram emoções, manifestações da alma. Hipócrates afirmava que a dor era uma resposta a um desequilíbrio dos fluidos vitais do corpo. Durante a Idade Média, à dor conferiu-se um aspecto externo, uma forma de Deus punir e reafirmar a fé dos homens, e sua cura se dava através da oração. Leonardo da Vinci foi um dos que associaram a dor ao cérebro, propondo, inclusive, o papel da espinha dorsal na transmissão ao cérebro.
René Descartes, em 1664, foi pioneiro em sistematizar a dor. O filósofo via o corpo humano como uma máquina. Descreveu que, ao encostar o pé em uma chama acesa, as partículas de calor penetravam por nossa pele e eram levadas até o nosso cérebro através de um fio condutor. No cérebro, abriam uma cavidade e liberavam os espíritos animais, que iam até os músculos, gerando o movimento necessário para afastar a perna da causa da dor.
É interessante notar, através dessa breve recapitulação, como a dor, uma experiência sensorial misteriosa e incompreendida, começou a ser sistematicamente entendida e associada à anatomia e à fisiologia do organismo. Os sacerdotes das civilizações antigas viam a dor como causada pelos demônios, os religioso medievais como uma punição infligida por um deus, enquanto os estudiosos da pré-renascença e do renascimento em si começavam a associá-la a processos e mecanismos corporais ainda não totalmente esclarecidos à época. O próprio Descartes comparava a dor com o soar de um sino.

Para Descartes, as partículas de calor do fogo despertavam o espírito animal em nosso cérebro, responsável pela resposta à dor.
Para Descartes, as partículas de calor do fogo despertavam o espírito animal em nosso cérebro, responsável pela resposta à dor.

Hoje sabemos que a dor é uma experiência do sistema nervoso. Sabemos que receptores são capazes de detectar a causa da dor e transmitir essa informação ao sistema nervoso central, onde a dor será processada e interpretada, desencadeando uma resposta motora no sentido de afastar-se ou mesmo tentar aliviá-la. E tudo isso acontece em um intervalo de milissegundos – ou seja, não é de se espantar que por muitos séculos a dor (assim como outros vários aspectos do comportamento e das sensações) tenha sido associada ao místico.

Descartes, por exemplo, não estava completamente equivocado. Sensores em nossa pele são estimulados pelo calor do fogo. Através de uma rede de neurônios, transmitem a informação à medula espinhal, que se comunica diretamente com o cérebro, onde a dor é processada e interpretada. Ou seja, é por isso que sentimos a dor. Em resposta, as regiões encefálicas que controlam o movimento enviam estímulos aos músculos e geram, então, o afastamento do fogo. Isso ocorre muito rapidamente e a resposta desencadeada é imprescindível para que a lesão não cause ainda mais danos.
É o soar do sino, como um alerta ao corpo. A dor tem a função de informar ao cérebro que há algo de errado acontecendo, que alguma lesão ou dano está acontecendo e, portanto, é a dor quem previne que um dano ainda maior ocorra. Com a dor, ao tocar em uma superfície extremamente quente, nos afastamos em questão de segundos dessa fonte de lesões. Sem a dor, porém, nós não sabemos que a superfície quente está danificando nosso corpo e isso implica em prejuízos maiores ao organismo.

Esquema mostrando o caminho simplificado da dor. Dos sensores na pele aos nervos, passando pela medula espinhal e chegando ao cérebro. (Adaptado de http://www.feelingprettyremarkable.com)
Esquema mostrando o caminho simplificado da dor. Dos sensores na pele aos nervos, passando pela medula espinhal e chegando ao cérebro. (Adaptado de http://www.feelingprettyremarkable.com)

Além disso, como qualquer experiência sensorial, a dor é algo subjetivo e definida de acordo com as vivências de cada pessoa. No sentido evolutivo, por outro lado, seu valor é bastante claro: a dor é incômoda, desagradável, associada ao sofrimento físico e emocional, mas que atua como um importante mecanismo de alerta ao organismo, podendo ser vital em algumas situações.
A dor pode ser aguda ou crônica. As dores crônicas podem ser inflamatórias ou neuropáticas, dependendo se sua causa. Há também a dor recorrente, que é uma mistura da dor momentânea com a dor que persistente por mais tempo.
Também pode ser referida. Em um quadro de infarto do miocárdio, a maioria dos pacientes relata dores no braço ou no pescoço. Isso porque os neurônios do coração e os dessas regiões da pele convergem a um mesmo neurônio receptor (lembre-se que a informação viaja através de uma rede de células nervosas, que transmitem os impulsos umas às outras).
Por convergirem a um mesmo neurônio, a dor é interpretada pelo cérebro como uma dor na pele – como se o cérebro se confundisse em relação à origem da informação. De qualquer maneira, a dor é um alerta de que algo está errado e pode ser crucial, quando a causa é tratada adequadamente, para a sobrevivência.

Assim como o entendimento da dor, os tratamentos e curas dos “males” mudaram muito ao longo da história. Na antiguidade, aplicava-se pressão e calor à região para aliviar o desconforto. Hoje, temos a nossa disposição analgésicos, que agem diretamente na interrupção da transmissão da dor.
Sacerdotes utilizavam plantas para curar os males. Hoje em dia, diversas drogas só se tornaram possíveis graças ao conhecimento transmitido através das gerações, o que instigou pesquisadores a isolar as substâncias e os subprodutos vegetais, permitindo que medicamentos fossem planejados, testados e comercializados.
Perceba que, apesar de não haver um conhecimento sistematizado e formalizado na antiguidade, ou mesmo em comunidades isoladas que ainda existem hoje em dia, como comunidades ribeirinhas e indígenas, o conhecimento existe através da experiência. Um sacerdote pode notar que o chá de determinada erva-cidreira é capaz de aliviar dor de cabeça e insônia e ensinar isso aos seus aprendizes. Esse sacerdote não é um médico, e ele não se preocupa em entender como esse chá age sobre o corpo, nem mesmo por que. Mas sem esse conhecimento, os cientistas talvez tivessem levado muito mais tempo para desenvolver diversos medicamentos importantes.
O primeiro fármaco produzido, por exemplo, foi a aspirina. Seu principal componente é o ácido acetilsalicílico, uma substância modificada da salicina. A salicina é produzida naturalmente por uma planta, o salgueiro, cuja casca era bastante utilizada pelo índios americanos para se produzir um chá no combate da febre.

A papoula, de onde é extraído o ópio e a estrutura química da morfina
A papoula, de onde é extraído o ópio e a estrutura química da morfina

A morfina, por exemplo, é a principal escolha para o tratamento de dores agudas intensas, e utilizada em muitos procedimentos médicos para aliviar a dor. É a substância mais comum na composição do ópio, o látex que é extraído da papoula (Papaver somniferum). O ópio tem sido usado há mais de quinhentos anos para alívio da dor e hoje em dia, a morfina é uma substância de uso controlado e de grande importância para a medicina, tendo inclusive servido como precursor para a sintetização de diversos fármacos em laboratório.

Note que entender a dor e saber como tratá-la envolve diversos conhecimentos científicos. As próprias ciências médicas possuem diversas abordagens de um mesmo problemas: um pesquisador pode estar mais preocupado em entender as causas de certa dor, um outro pode estar mais interessado nos mecanismos envolvidos na dor, enquanto um terceiro pode querer investigar mais a fundo quais substâncias podem ser utilizadas para aliviar a dor. De qualquer maneira, a construção do conhecimento passar por diversas instâncias. O sacerdote que utiliza a papoula para tratar a dor intensa de um membro de sua comunidade pode ser bem sucedido pois está embasado em um tipo diferente de conhecimento, um conhecimento popular e transmitido culturalmente.
E, assim como a dor, nenhum conhecimento pode ser desprezado ou ignorado. Muitas vezes, o saber de uma benzedeira de bairro pode ser o soar do sino necessário para que um fármaco capaz de salvar milhões de vidas seja produzido.

 

(Este texto foi baseado no encontro do programa Adote um Cientista do dia 10 de março de 2016, com as palestras “Por que sentimos dor?” e “Desenvolvimento de novos medicamentos a partir de plantas medicinas”.)

 

texto por Vinicius Anelli

revisado por Luciana Silva