O biólogo Ricardo Marques Couto é um parceiro de longa data da Casa da Ciência e, atualmente, colaborador dos programas e da equipe. No encontro do dia 19 de maio, Ricardo mostrou sua vasta experiência com os alunos e trouxe um assunto complexo, mas diretamente ligado a palestras anteriores do semestre que trabalharam temas e conceitos envolvendo a Evolução Biológica.

Ontogenia, segundo o pesquisador, se refere ao processo de formação e desenvolvimento de todo organismo (ou seja, de todo indivíduo), desde a fertilização do ovo até a chegada da maturidade. Já uma filogenia é uma representação de uma hipótese de parentesco entre diferentes linhagens de seres vivos, assumindo-se que todos os seres vivos possuem ancestralidade compartilhada em algum momento de sua história evolutiva.

Definidos esses dois termos, Ricardo apontou que a ideia de que a ontogenia é capaz de recapitular a filogenia foi inicialmente proposta por Haeckel, na década de 1860. Haeckel já havia sido influenciado pelos trabalhos de Darwin quando apresentou essa discussão, e propôs que a história do desenvolvimento de um organismo (ou seja, sua ontogenia) repete a evolução de sua espécie (filogenia), de tal forma que, se peixes e primatas são partes da história evolutiva do Homo sapiens, então, em diferentes pontos da ontogenia do homem, o embrião se assemelha a um peixe e a um macaco. “Essa é uma frase famosa e que tem sido amplamente divulgada, estando inclusive em muitos materiais didáticos”, explicou Ricardo. “Minha ideia, hoje, é desconstruí-la e fazer com que vocês tenham um olhar crítico sobre ela”.

ricardo4Para isso, Ricardo começou apresentando aspectos do desenvolvimento embrionário dos animais vertebrados, destacando as muitas similaridades que as ontogenias de diferentes espécies possuem entre si. Ricardo não se limitou às fases iniciais, como também falou dos tecidos embrionários, do celoma (uma importante novidade evolutiva associada ao surgimento da mesoderme) e de outras características, como as fendas faríngeas (fossas branquiais), presente em embriões de todos os vertebrados, tanto os peixes e anfíbios quanto as aves, répteis e mamíferos.

A presença dessas fendas nos embriões de todas essas espécies é uma evidência de que essas linhagens compartilham um ancestral em comum. Esse ancestral comum era um “peixe” primitivo, que viveu nos oceanos há cerca de 500 milhões de anos, diferente dos peixes que conhecemos hoje. O registro fóssil nos revela que essa espécie possuía fendas faríngeas no indivíduo adulto, envolvidas com a filtração e a captação de alimentos. Um animal marinho vivente, a lampreia, conserva diversas características semelhantes às apresentadas por esse ancestral dos animais vertebrados.

Hoje sabemos que a presença dos arcos faríngeos está associada ao surgimento da mandíbula nos vertebrados, uma modificação que afetou a forma como esses animais se alimentam. Em espécies de peixe que vivem nos dias de hoje, os arcos estão envolvidos com o desenvolvimento das brânquias, especializações relacionadas com a respiração debaixo d’água. Outra importante característica é o arco aórtico, que liga o pulmão ao lado direito do coração, em mamíferos. “A origem dessa estrutura está no desenvolvimento dos arcos faríngeos no embrião dos mamíferos”, explica Ricardo.
Ricardo destacou que, apesar dos embriões de vertebrados apresentarem arcos faríngeos, isso não faz com que eles sejam peixes. Isso apenas evidencia que todos esses animais, inclusive alguns peixes, possuem um ancestral compartilhado, no qual, durante o desenvolvimento embrionário, também apresentava esses arcos que estavam diretamente envolvidos com estruturas filtradoras no indivíduo adulto.

ricardo3Você contradiz a teoria da recapitulação, que ela fala que os estágios iniciais do desenvolvimento são muito semelhantes. Mas ela fala do desenvolvimento inicial… no desenvolvimento tardio isso não mudaria por causa da expressão gênica?”, perguntou uma aluna. “Quando Haeckel falou isso, ele comparou o embrião humano com os adultos de peixes, anfíbios, répteis e aves (…). Ele compara o embrião com os adultos. Qual o problema? Em nenhum momento, ele comparou o embrião do humano com o embrião de outros seres vivos (…). Isso dá um valor direcional ao processo evolutivo (…). E o que ele fala é que o embrião do homem lembra o estágio adulto de outras espécies, de tal forma que essas espécies representam ‘fases’ para chegar ao ser humano”, explica Ricardo. “Quando eu comparo padrões de desenvolvimento, como a gente fez com os vertebrados, eu não estou fazendo uma recapitulação. Eu apenas tenho indícios de que há um ancestral em comum entre essas linhagens”.

 

Ricardo mostrou, durante sua fala, que a ontogenia pode revelar muito sobre a filogenia, mas no sentido de evidenciar ancestralidade compartilhada através de semelhanças nos padrões de desenvolvimento dos seres vivos. O pesquisador desconstruiu a ideia inicial de Haeckel, que ainda é utilizada em escolas e universidades como verdadeira e como evidência da evolução, mas que, apesar de sua importância à época de sua formulação, hoje sabemos ser equivocada. Neste sentido, sua aula não apenas se faz complementar às outras palestras que discutiram Evolução Biológica e Biologia do Desenvolvimento nesse semestre – temas de difícil e complexa assimilação por parte dos alunos – mas necessária, por desenvolver um olhar crítico ao que é ensinado sobre a evolução e a diversidade dos seres vivos.

 

texto por Vinicius Anelli

revisão por Marisa Barbieri e Roberto Sanchez