Materiais genéticos não-codificantes: do DNA “lixo” ao RNA “luxo”

Mestrando em Genética pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP – USP), Ádamo Siena tem uma relação de proximidade com a Casa da Ciência que já conta com alguns anos: participou dos programas da Casa como aluno, passou no vestibular e, uma vez formado em Ciências Biológicas, voltou à Casa, dessa vez para integrar sua equipe – participando do desenvolvimento de diversos projetos, dentre eles, oAdote uma Experiência.

Embora, atualmente, não faça parte da equipe para dedicar-se ao mestrado, Ádamo sempre está presente nos eventos e participa como pesquisador-colaborador dos programas da Casa. Na tarde do dia 9 de abril de 2015, trouxe aos alunos do Adote um Cientista um pouco mais sobre sua linha de pesquisa, resgatando conceitos fundamentais para se entender o funcionamento das células a nível molecular.

Um piano possui um número fixo de teclas; porém, a possibilidade de músicas que você pode tocar é imensa”. Foi com essa metáfora que o pesquisador iniciou sua fala. “Vocês irão entender porque eu estou falando disso ao fim dessa aula!”.

Ádamo continuou sua fala relembrando os alunos que a diversidade morfológica observada nos seres vivos é gigantesca. Essas características (assim como todas as outras características, não apenas as morfológicas!) são passadas de geração para geração através da reprodução, pela transferência do material genético. No caso dos animais, por exemplo, o gameta masculino vai de encontro ao gameta feminino (ambos carregando uma parte do material genético dos pais) e, ocorrendo a fecundação, é formado o zigoto – uma única célula que será a precursora de todas as outras células do indivíduo em formação. Inicia-se, então, o processo de divisão celular que irá produzir, a partir do zigoto, o organismo multicelular completo – isso significa que uma única célula dará origem a milhões de outras células e, o mais impressionante, de diversos tipos.

DNA e RNA. E proteína.

Vocês acham que uma célula do seu olho é igual a uma célula do seu fígado?”, instigou Ádamo. Os alunos responderam que não. “Então o DNA encontrado na célula do olho é diferente do DNA encontrado na célula do fígado?”.

Na verdade, não. Ambos os tipos celulares se originaram a partir de uma mesma célula – o zigoto -, que continha material genético trazido pelos gametas feminino e masculino (que, unidos, deram origem ao próprio material genético do zigoto). “Mas, sabendo que o DNA nuclear dessas células é o mesmo, como podemos explicar tamanha diferença entre elas?

Responder essa pergunta não é tão simples. Ádamo recuperou, então, o conceito do Dogma Central da Biologia Celular, que norteou durante muitos anos os estudos de biologia celular. O DNA contém toda a informação genética necessária para que a célula funcione corretamente. Essa informação é passada para o RNA (através de um processo chamado de transcrição) e, a partir do RNA, é sintetizada uma proteína (processo chamado de tradução). Essa proteína será a efetora da informação contida no DNA – ou seja, a principal responsável por dar as características aos indivíduos.

Hoje em dia, se sabe que essa relação (DNA é transcrito em RNA, que é traduzido em proteína), embora não esteja equivocada, na verdade é uma visão muito simplista de como o DNA “controla” os mecanismos celulares. Por muitos anos, os cientista focaram seus estudos em compreender como as proteínas atuam na célula.

“Proteínas são como tijolos – elas constituem nossos músculos, nossos ossos… elas constroem todo o nosso corpo”

Ádamo complementou a fala do aluno explicando que as proteínas não atuam apenas estruturalmente – constituindo todas as células de nosso corpo – mas também funcionalmente; por exemplo, as enzimas catalisam reações químicas imprescindíveis para a manutenção celular.

Os genes desmascarados
A informação contida no DNA é distribuída pelos genes. Um gene é um trecho do DNA que, por exemplo, é capaz de codificar uma molécula – RNA mensageiro (mRNA) – que dará origem à proteína. Por muito tempo, acreditou-se que os genes eram responsáveis unicamente pela produção de mRNA (os transcritos codificantes) que, por sua vez, eram traduzidos em proteínas. Hoje não só se sabe que isso não é absoluto, como também se expandiu o conhecimento sobre a estrutura do gene.

De fato, pesquisadores descobriram que os genes são formados por sequencias de nucleotideos, que após a transcrição são submetidos a um processamento em que alguns trechos de RNA serão removidos e outros serão mantidos (RNA splicing). No caso de RNAs codificantes de proteinas, somente as sequencias que forem mantidas resultarão em proteínas. Essas sequências que são expressas em proteinas e estão contidas dentro de um gene são chamadas de éxons. Já as sequências que separam os éxons são chamadas de íntrons.
Por isso mesmo, por muito tempo acreditou-se que os íntrons eram, na verdade, DNA “lixo”, que não tinha função alguma na célula e que estavam ali apenas ocupando espaço. Hoje, é conhecido a importância destes introns no splicing alternativo, capaz de gerar uma grande diversidade transcritos a partir do mesmo gene ou mesmo atuando como reguladores da expressão gênica (micro-RNAs).

Dois projetos: o Genoma Humano e o ENCODE
Genoma é o termo utilizado para designar o conjunto de genes em uma dada espécie. Quando os pesquisadores viram sua atenção voltar-se para os genes, reuniu-se um gigantesco esforço na tentativa de mapear todos os genes da nossa espécie. Bilhões de dólares investidos, centenas de pesquisadores envolvidos e alguns anos depois, o Projeto Genoma Humano apresentou um mapeamento completo dos genes que constituem o material genético do ser humano. Apesar disso, outro resultado do Projeto Genoma também chamou a atenção: descobriu-se que apenas 2% de todo o DNA expressa proteínas. Ou seja, 98% do material genético nuclear passou a ser considerado DNA “lixo” por alguns pesquisadores, simplesmente por não resultar em proteínas como produto final.

“A mitocôndria possui material genético diferente do DNA nuclear. O DNA mitocondrial também possui esse DNA ‘lixo’?”

Ádamo explicou ao aluno que essa pergunta depende de uma especulação prévia: a origem da mitocôndria, que é a organela responsável pela produção de energias nas células eucariontes. Uma hipótese vigente é a de que a mitocôndria tenha se originado a partir da assimilação de um organismo procarionte (uma bactéria, por exemplo) e que possui um material genético diferente do DNA nuclear. Assim, como na maioria dos procariotos, o DNA mitocondrial possui genes contíguos (próximos entre si), mas separados por pequenas regiões não-codificantes que, embora irrisórias, existem.

Dentre as consequências do Projeto Genoma Humano, houve o surgimento de uma série de especulações. A expressão “deserto gênico”, referindo-se a extensas regiões não-codificantes do DNA, nunca fez tanto sentido. Questionou-se como esses trechos de DNA inútil não tinham sido eliminados ao longo do processo evolutivo – uma hipótese plausível sugere que esses trechos são atrativos para mutações e que, por não serem trechos codificados, essas mutações não trariam efeitos nocivos para o organismo. Além disso, tomando como base o próprio dogma central da biologia, uma pergunta foi levantada: sabemos que apenas 2% do DNA gera proteínas; mas isso significa que apenas 2% do DNA é transcrito?

Surge, então, o Projeto ENCODE, cujo grande objetivo era analisar a parte não-codificada do material genético, verificando sua relevância e os mecanismos que estão envolvidos.

Um dos grandes avanços desse projeto foi a descoberta de que 80% de todo o genoma humano é transcrito. Esse índice elevado levanta um novo questionamento: sabemos que 2% do material genético é traduzido em proteínas; também sabemos que 80% é transcrito; qual seria, então, a função de todo esse RNA produzido?

Com isso, Ádamo criou o termo “RNA luxo” (termo utilizado, inclusive, para nomear a palestra), destacando a abundância de RNA na célula.

Ádamo estabeleceu algumas relações interessantes para os alunos. Primeiramente, contou que uma planta (a Arabidopsis thaliana)  possui a mesma quantidade de genes que um ser humano, porém em um DNA bem menos extenso. “Ou seja, o tamanho do DNA não está relacionado diretamente ao número de genes”, concluiu o pesquisador. Além disso, uma pulga d’água, um artrópode microscópico, possui em torno de 35 mil genes codificadores de proteínas, enquanto nós possuímos cerca de 20 mil. “Isso significa que a complexidade do organismo não depende do número de genes encontrados em seu DNA”, afirmou o biólogo.

RNA’s não-codificantes

Atualmente, o dogma central da biologia celular foi revisto. Sabe-se que a relação “1 gene para 1 RNA mensageiro para 1 proteína” não pode ser tomada como uma verdade absoluta.

Ádamo contou que existem diversos tipos de RNAs. E que eles exercem diversas funções. O próprio RNA mensageiro está envolvido com o processo de tradução. Já o RNA ribossômico constitui o ribossomo, que participa ativamente na tradução do mRNA em proteínas. Outros tipos de RNAs, porém, possuem uma função regulatória e que não está envolvida, diretamente, com a tradução proteica. Os micro RNAs, por exemplo, (que possuem um tamanho bastante pequeno, de 21 a 25 nucleotídeos) podem se ligar a outros RNAs (como o mRNA) e, assim, alterar a síntese proteica.

“Então o RNA é mais importante do que o DNA?”

Ádamo respondeu à pergunta afirmando que ambos são muito importantes. Ele disse, ainda, que um depende do outro para exercer suas funções. E que essa noção pode ser ampliada para muitas questões envolvendo os organismos – a do equilíbrio, de que isso não é mais importante do que aquilo; mas sim ambos, combinados, são imprescindíveis.

A função regulatória dos RNAs ainda é algo recente na ciência e que precisa ser melhor compreendida. Alguns mecanismos já são bem conhecidos, mas muitos estudos são conduzidos para se entender melhor os mecanismos envolvidos.

O pesquisador trouxe aos alunos do programa um exemplo de RNA regulador. No caso, ele contou um pouco mais sobre olncRNA XIST (lcnRNA = RNA não-codificante longo, com mais de 200 nucleotídeos; XIST = X-inactive specific transcript). Esse lcnRNA é denominado XIST por se transcrito pelo cromossomo X inativo. No caso, é sintetizado pelo cromossomo X que será silenciado e acaba por cobrir o próprio cromossomo, impedindo que a transcrição do material genético daquele cromossomo ocorra. Isso é importante uma vez que, nos mamíferos, normalmente dois cromossomos sexuais (um transmitido pelo gameta masculino, outro pelo gameta feminino), coexistem no núcleo celular. No caso das fêmeas (que são XX), um desses cromossomos expressa o lncRNA XIST e, portanto, é inativado e apenas o outro cromossomo será ativo. No caso dos machos (XY), por possuirem um unico cromossomo X, não há expressão do lncRNA XIST e assim estão ativos ambos os cromossomos sexuais (X e Y). O lcnRNA XIST, portanto, é um RNA que não está envolvido com a produção de uma proteína específica (como se esperaria há algumas décadas), mas com a regulação da expressão gênica de determinado trecho do DNA (no caso, de todo o cromossomo X).

Do DNA “lixo” ao RNA “luxo”

Durante sua fala, Ádamo seguiu uma linearidade histórica para a discussão do material genético não-codificante. Passando por diversos momentos da investigação científica acerca de um mesmo assunto e pelo o que essas descobertas incutiram nos cientistas, mostrou que o conhecimento científico é constantemente construído.

A ideia do DNA “lixo”, sugerida há alguns anos, foi substituída pela ideia do RNA “luxo”, referindo-se a imensa quantidade de RNA que é produzido para diversas outras funções além da síntese proteica. Uma das especulações trazidas pelo biólogo e ainda não respondida pelos cientistas é a do papel dessas regiões não-codificantes ao longo do processo evolutivo.

Além disso, encerrou sua fala incitando a reflexão aos alunos. Ao fim de uma tarde falando sobre material genético não-codificante, Ádamo Siena que, mais do que ninguém, sabe o que significa participar do programa Adote um Cientista, deixou aos alunos o seguinte questionamento: “Ao fim de tudo isso, o que seria codificar?”. Fica aos alunos, com o conhecimento adquirido, a construção de suas próprias conclusões.


Espaço dos alunos

A partir da análise das filipetas do encontro, a equipe da Casa da Ciência produziu este infográfico destacando as principais dúvidas manifestadas pelos alunos e os principais conceitos aprendidos no encontro. A finalidade deste instrumento é a avaliação dos momentos de aprendizagem do aluno e valorização da sua dúvida.


 Texto

Autoria: Vinicius Anelli

Edição: Ádamo Siena

Revisão: Profa. Dra. Marisa Barbieri e Alice Okabayashi

Espaço dos alunos

Análise de filipetas: Luciana Silva

Infográfico: Vinicius Anelli

Diagramação

Vinicius Anelli