O que pode ser comparado entre diferentes espécies?

Quando se fala em comparar diferentes entidades biológicas (espécies, populações, linhagens, grupos, etc.), os biólogos se deparam com um complexo questionamento: o que é comparável? Embora complexo, esse é um dilema imprescindível para o avanço dos estudos, uma vez que linhas de pesquisa que se fundamentam erroneamente podem trazer interpretações equivocadas sobre o que ocorre, de fato, na natureza.

 

Vendo o mundo com os olhos da ciência (ou do homem?)
Vamos relembrar, primeiro, que a ciência é feita pelo homem – e, por isso mesmo, traz um viés intrínseco do qual é difícil fugir. Nossas percepções de mundo levam em consideração o que conhecemos, o que entendemos e não entendemos, e também nossas experiências – ou seja, para cada cientista há uma interpretação subjetiva dos fatos (considerando que os fatos sejam os mesmos!).
Pense em uma asa, por exemplo. A asa, por si só, não é uma estrutura única. Em primeira análise, asa nada mais é do que um signo, uma palavra que traz consigo um significado que pode mudar de pessoa para pessoa. Para mim, asa pode ser a asa de um morcego. Para você, pode ser a asa de uma borboleta. Para ela, a de um pinguim. Para ele, a de um pardal. Enfim, ao falarmos de asa podemos estar falando de um conjunto extenso de “coisas” reais (podemos usar “estruturas”, nesse caso) – e isso, geralmente, não é interessante para a ciência, em especial para a Biologia Comparada.
A primeira pergunta que surge é: há diferenças entre essas “asas”? Estudos não comparativos mostram que sim. As asas são compostas por estruturas e processos diferentes, apresentam um funcionamento que varia de grupo para grupo e surgem, durante o desenvolvimento embrionário, a partir de diferentes regiões do embrião, em diferentes momentos da ontogenia. Sim, a biologia geral nos diz que há diferenças.
Mas elas são comparáveis?

 

Diferenças e diferenças
Afinal, diferenças são imprescindíveis nas populações. Elas podem ocorrer por diversos motivos. A fêmea de um pavão, por exemplo, é diferente do macho da mesma espécie (como não notar a exuberante e colorida cauda do macho?). Mesmo entre os machos, há diferenças. Um macho adulto é bem diferente de um que acabou de sair do ovo – esse é menor, desengonçado, um pouco feio até, coitado. Vamos olhar, então, para dois machos dessa espécie com a mesma idade. Agora sim eles apresentam muitas semelhanças! Mas são exatamente iguais? Não… um pode ser um pouco maior que o outro, o outro pode ser mais agressivo, ou mesmo mais forte. Essas diferenças, apesar de sutis, são importantes. É o que chamamos de variação.

www.hdnicewallpapers.com

As asas dos pardais domésticos, por exemplo, não são todas iguais. Elas apresentam diferenças, assim como apresentam um conjunto maior de semelhanças. São asas de indivíduos de uma mesma espécie, mas que pertencem a diferentes indivíduos. Lembre-se que os indivíduos de qualquer espécie animal são provenientes da fecundação (ou seja, a fusão entre os gametas de um macho com o de uma fêmea, dando origem a um novo organismo). O próprio mecanismo de reprodução sexuada garante a variabilidade em uma população.
Enfim, diferenças não são de todo ruim. Mas há um momento em que as diferenças são tantas, que as estruturas não podem ser comparadas em um nível biológico. Por que não? Porque as semelhanças entre estruturas comparáveis são capazes de revelar a história evolutiva daquela linhagem!

 

Padrões de semelhanças e diferenças entre espécies: uma abordagem evolutiva
Até agora, falamos sobre diferenças entre estruturas compartilhadas por uma mesma espécie. Mas espécies diferentes também compartilham estruturas. O pardal-doméstico, por exemplo, é o nome que damos comumente a um conjunto de indivíduos da mesma espécie. Por pertencerem a mesma espécie, esses indivíduos compartilham diversas estruturas (“estruturas” podem ser entendidas como elementos da anatomia, fisiologia, comportamento, etc.) entre si, a asa sendo uma delas. Indivíduos de uma espécie muito próxima, o pardal-montês, também compartilham estruturas entre si, inclusive a asa, e uma análise mais detalhada vai mostrar que a asa dos indivíduos dessas duas espécies são muito semelhantes. São, portanto, estruturas compartilhadas, e que refletem um grau de parentesco próximo – revelando a ancestralidade comum entre as espécies.
Ao olharmos com cuidado a osteologia, histologia, morfologia, fisiologia e ontogenia das asas dessas duas espécies, podemos inferir que elas são estruturas homólogas, ou seja, apresentam semelhanças que indicam uma evidência de parentesco entre as espécies. Parentesco porque, ao traçarmos o passado dessas duas espécies, conseguimos achar um momento em que essas linhagens apresentam um ancestral comum, compartilhado e que, pode-se inferir, tinha uma asa bastante parecida com a asa do pardal-doméstico e com a do pardal-montês.
Nesse caso, a relação entre a asa do pardal-doméstico e a asa do pardal-montês reflete a herança de uma parte comum, ou seja, a herança da asa do ancestral compartilhado por essas duas espécies, que foi herdada (com modificação) pelos seus descendentes. Perceba que as asas não são exatamente iguais – afinal, são espécies diferentes. Mas sim que ambas têm origem evolutiva em uma estrutura ancestral e compartilhada.

 

Não tão parecidos assim: o caso das convergências adaptativas
É possível, então, comparar a asa dos pardais com a das borboletas?
Se analisarmos cuidadosamente essas estruturas, notaremos uma série de diferenças que revelam que elas não são estruturas herdadas de uma estrutura ancestral comum. Elas têm origens evolutivas distintas, embora ambas estejam relacionadas a uma mesma função, o voo. Nesse sentido, elas são comparáveis: em termos de função. Mas em termos de contínuo evolutivo, não. São estruturas, portanto, não-homólogas.

(Retirado de www.factzoo.com)
(Retirado de www.factzoo.com)

As asas dos morcegos, por exemplo, possuem diversas equivalências com as asas dos pardais. Em ambos os casos, são modificações do membros anteriores que estão associadas ao voo. Apesar disso, um estudo mais cuidadoso das estruturas, associado a uma hipótese filogenética que revela a relação evolutiva entre esses dois grupos (morcegos são mamíferos, enquanto pardais são aves), indica que essas estruturas não apresentam origem em uma estrutura presente em um ancestral compartilhado. Elas surgiram, portanto, em momentos diferentes da evolução e em linhagens diferentes. Nesse caso, estamos falando de uma homoplasia, ou seja, da aquisição independente de estruturas equivalentes entre si.
Quando falamos de convergências adaptativas, estamos falando de homoplasia. No caso, é a aquisição de forma independente de características equivalentes e que respondem a pressões seletivas semelhantes. As semelhanças, aqui, não se devem a ancestralidade compartilhada, mas a demandas seletivas semelhantes. É o caso do voo, por exemplo, ou do hábito fossorial.
Diversas linhagens fossoriais de roedores apresentam adaptações similares à vida subterrânea e essas adaptações parecem ter surgido de forma independente em diferentes linhagens. Há uma convergência no sentido das estratégias adotadas pelas diferentes linhagens, mas essas adaptações, aparentemente, não surgiram em um mesmo ancestral e foram compartilhadas pelas linhagens, mas sim em diferentes ancestrais, em diferentes momentos da história evolutiva do grupo – em resposta a um cenário semelhante, a ocupação do ambiente subterrâneo por esses mamíferos.

 

Estruturas homólogas e as belezas do mundo natural
A homologia, portanto, é um conceito essencial para a biologia comparada. Ela permite que comparemos diferentes entidades biológicas entre si, bem como diferentes estruturas, e tem o valor de nos revelar um pouco mais sobre a história evolutiva dos grupos. Há muito mais a ser falado sobre isso, e também a ser discutido. Por se tratar de um conceito essencial, diversos teóricos apresentam diferentes formas de se olhar para estruturas homólogas.
Se pensarmos que a vida teve uma origem única, então podemos traçar a origem de todos as estruturas dos seres vivos a uma única origem. É a regressão infinita à origem da vida. Tudo vai depender do espectro de sua análise e da magnitude da amostragem, com quais grupos está se trabalhando e também qual pergunta está sendo investigada.
Apesar disso, comparar seres vivos é importante para entender evolução da vida. Dessa forma, aos poucos, os biólogos vão recuperando e reconstruindo o caminho que a vida vem seguindo desde seu surgimento, se diversificando em formas exuberantes, tão diferentes e semelhantes entre si, e de infinita beleza.

 

escrito por Vinicius Anelli

revisado por Marisa Barbieri e Roberto Sanchez