Química forense: a utilização da química contribuindo na solução de crimes

A aplicação de um amplo espectro da ciência para a solução de perguntas de interesse legal ou jurídico é o que caracteriza as ciências forenses. Muitas vezes, entender quem fez e como foi realizada uma atividade criminosa pode soar uma tarefa misteriosa, despertando grande interesse da sociedade. Casos famosos de assassinatos estampam as páginas dos jornais e as manchetes dos telejornais, sendo romantizados em filmes e em programas televisivos. A realidade, porém, pode ser tanto fascinante quanto decepcionante: a perícia não é feita de milagres, mas sim de ciência!

Docente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP), o Prof. Dr. Bruno Spinosa De Martinis tem experiência na área, e compartilhou com os alunos do programa Adote um Cientista, no encontro do dia 22 de outubro, um pouco mais sobre o trabalho dos peritos na elucidação de crimes.

O advento das Ciências Forenses

Diversas áreas do conhecimento são utilizadas para isso. Arqueologia, odontologia, patologia, biologia, criminalística, computação, engenharia, química e medicina são campos da ciência que podem ser aplicados na busca de respostas a perguntas de interesse jurídico.
A morte sempre fascinou o ser humano. A busca por respostas, investigando a causa mortis (causa de morte) dos indivíduos, caracteriza o que se considera como uma das atuações mais instigantes das Ciências Forenses. Durante seu desenvolvimento, a Medicina desempenhou (e ainda desempenha) um papel imprescindível – entender os mecanismos vitais, fisiológicos, e a constituição do ser humano é necessário para se elucidar sua morte, seja de causas naturais, seja em condições misteriosas. 
Nas sedentas brigas por poder, envenenadores profissionais eram contratados para que figuras do topo da pirâmide social fossem derrubadas na surdina, dando lugar à ascensão de outros. O arsênico era conveniente porque os sintomas do envenenamento eram facilmente confundidos com os da cólera. Apesar disso, o crescente uso de envenenadores profissionais nas disputas pelo poder, levou aqueles que sabiam ter inimigos a investir em especialistas para que mortes estranhas fossem investigadas. Rodrigo Bórgia, por exemplo, foi eleito Papa em 1492, adotando o nome de Alexandre VI. Morreu em 1503, tendo compartilhado com seu filho, Cesare, uma de suas próprias garrafas de vinho envenenado, acidentalmente. A família ficou amplamente conhecida por seu uso do arsênico na ambiciosa busca pelo poder.

A Química Forense

A urgência, no contexto apresentado, em se detectar a presença de arsênico em cadáveres é justificável. Foi apenas no século XIX, porém, que uma solução para esse problema foi obtida. Muitos pesquisadores participaram dessa busca, dentre eles Mathieu Orfila, o “pai da toxicologia”, e James Marsh, precursor do “teste de Marsh”. Em 1832, Marsh foi convocado para testemunhar como perito em um caso de assassinato. Utilizou um teste que consistia em ministrar sulfeto de hidrogênio gasoso nos fluidos do corpo envenenado – a presença de arsênico tornaria a solução amarela. Isso ocorreu. Mas o júri inocentou o réu, pois não considerou o teste confiável – o arsênico possui cor metálica cinza em seu estado natural. Esse caso fez com que Marsh, irritado, se empenhasse em desenvolver um novo teste, que deixasse evidente a presença da substância, o tal “teste de Marsh”. Utilizado até hoje, o procedimento possui uma grande sensibilidade à presença do veneno.

Casos como esse mostram porque a Química é considerada quase tão importante quanto a Medicina nas Ciências Forenses. É através da química que diversas perguntas de valor jurídico podem ser respondidas. No caso de envenenamentos, por exemplo, são conduzidas análises toxicológicas, que hoje em dia podem ser feitas utilizando-se amostras de urina, sangue, suor, saliva, humor vítreo, cabelo e até mecônio (substância expelida por recém-nascidos até 72 horas após o parto e que pode levantar todo um histórico do uso de substâncias ilícitas durante a gravidez, em um método não-invasivo).
Em grandes competições esportivas, os participantes são submetidos a exames de antidoping, para revelar o uso de substâncias não permitidas e que melhoram a performance física. Esses exames são feitos utilizando-se uma amostra da urina do competidor, a partir do qual é preciso isolar a substância ingerida, caso ela tenha sido realmente consumida.
Em casos mais graves, como homicídios, incêndios criminosos e grandes roubos, instituições de perícia (como a Polícia Federal e o Instituto de Medicina Legal) se associam a instituições de pesquisa (como Universidades), empenhando-se para encontrar os rastros deixados pelos criminosos. Um fato é que não existe crime perfeito. Evidências sempre passam.

Como a química pode ajudar a elucidar crimes?

O professor Dr. De Martinis trouxe aos alunos alguns exemplos de como os conceitos da química são utilizados por peritos. Docente no departamento de Química da FFCLRP, ele exemplificou como a química forense auxilia em questões de valor legal.

Caso um: uma intoxicação fatal

Um homem vai a uma festa com os amigos e volta para casa mais cedo com uma garota de programa. Toma vários copos de bebida e adormece no sofá. Os amigos chegam repentinamente, encontram o homem adormecido e conversam com a mulher antes que ela vá embora. Vão para seus quartos e deixam o homem adormecido no sofá. Na manhã seguinte, o homem está morto.
O que teria acontecido? A necropsia não revelou a causa da morte. Suspeita-se que a garota de programa ou os amigos estejam envolvidos. Um exame toxicológico é pedido e revela que os níveis de álcool no sangue eram normais. Outra substância é detectada, um fármaco de efeito antidepressivo, mas também em quantidade segura. Um estudo mais detalhado, porém, revela que a interação entre o medicamento e o álcool é perigosa. Nos níveis encontradas, foi suficiente para que o homem morresse. A causa da morte, enfim, determinada.

Caso dois: extração de analito da amostra biológica
Para se extrair uma substância misturada em determinada amostra, é preciso adicionar uma outra substância, um solvente, de propriedades semelhantes ao analito (substância que será analisada). É o princípio da química de que “semelhante dissolve semelhante”. Um exemplo é a quantidade de álcool misturada à gasolina. Para determiná-la, adiciona-se certo volume de água que, assim como o álcool, é polar. O álcool irá se dissolver na água, sendo possível determinar o volume que havia sido misturado à gasolina (apolar).

Caso três: presença de sangue em local de crime

O luminol é uma substância utilizada para se detectar rastros de sangue que não visíveis a olho nu. Reage com o ferro, do grupo heme da hemoglobina das células vermelhas do sangue (hemácias). Quando misturado com água oxigenada em um meio alcalino, o luminol é oxidado, produzindo quimiluminescência. Isso ocorre porque, oxidado, o luminol perde nitrogênio e oxigênio, formando o 3-amino-fitalato, uma substância não-estável que, quando perde energia, emite luz. A questão é que essa é uma reação lenta. Quando em contato com sangue, o ferro do grupo heme age como catalisador e a reação ocorre muito mais rapidamente. Borrifa-se solução de luminol, portanto, em áreas com suspeita de derramamento de sangue, emitindo luz quando isso tiver ocorrido.
Íons de ferro, cobalto, cobre e o hipoclorito de sódio (principal componente da água sanitária), porém, também reagem com o luminol. Isso produz falsos-positivo, ocorrendo a emissão de luz mesmo quando não há rastro de células sanguíneas na superfície testada. Por isso mesmo, outros testes são utilizados para confirmar o luminol, como análise em microscópio.

Caso quatro: análise de etanol no ar exalado
A lei seca é extremamente intolerante com motoristas que dirigem após ter consumido bebida alcoólica. O etilômetro (popularmente conhecido como bafômetro), é um indicador efetivo se houve ou não consumo de álcool.
No etilômetro mais simples, o ar é soprado dentro de um tubo com dicromato de potássio. O álcool, se estiver presente no ar exalado, é oxidado pelo dicromato em aldeído acético e, na reação final, o dicromato irá originar sulfato de crômio III, de coloração verde, em contrapartida com a cor inicial, amarela. A cor verde, nesse aparelho, indica embriaguez.
O etilômetro eletrônico não só indica a presença de álcool no ar exalado, como também sua quantidade. Funciona como uma pilha de combustível, utilizando princípios eletroquímicos. O etanol é oxidado em meio ácido sobre um disco plástico poroso coberto com pó de platina, que atua como catalisador, e umedecido com ácido sulfúrico, sendo um eletrodo conectado a cada lado desse disco. A corrente elétrica produzida é proporcional à concentração de álcool no ar expirado dos pulmões do indivíduo. Quando não houve consumo de bebida alcoólica, não há corrente, e o aparelho marca concentração zero.

Outros casos
Um método eficiente e rápido de se encontrar resíduos de disparos de armas de fogo, como chumbo e bário, é a aplicação de uma solução de rodizonato de sódio no local onde há a presença de partículas de chumbo ou bário, o que resultará em uma coloração vermelha forte, indicando a presença dos metais.
Outra técnica famosa, a papiloscopia, consiste em utilizar uma substância, tal como a aninidrina, que reage com substâncias do suor e das secreções da pele, deixadas em objetos quando os tocamos. Dessa forma, a aninidrina revela a impressão digital, que poderá ser acessada para identificar o indivíduo que tocou em determinado objeto de uma cena de crime ou em uma arma.

Ao fim da palestra, o pesquisador mostrou aos alunos a quimiluminescência do luminol, seja com amostra de sangue ou de água sanitária, e também se o bafômetro detecta produtos de enxague bucal. Neste último caso, o aparelho indicou certa concentração de álcool no ar exalado (uma vez que esses produtos são feitos à base de álcool), mas explicou que dez minutos após o enxague, já não será mais detectado no etilômetro. “Muitos motoristas usam isso como desculpa quando são pegos em testes de bafômetro, mas essa é uma justificativa bem fraca”, explicou.

Ao fim de sua fala, o docente reforçou que não há crime perfeito, cabendo às diversas áreas do conhecimento, como a química, encontrarem e compreenderem os rastros deixados para trás. Um exemplo interessante e cotidiano de como a ciência de base pode ser aplicada para diversos fins.



Texto

Autoria: Vinicius Anelli

Edição: Prof. Dr. Bruno Spinosa De Martinis

Revisão: Profa. Dra. Marisa Barbieri

Diagramação

Vinicius Anelli