Reconstruindo o passado: a história evolutiva das baleias

No encontro do Adote um Cientista do dia 16 de abril, o paleontólogo Dr. Estevan Eltink, do Laboratório de Paleontologia de Ribeirão Preto (LPRP) contou aos alunos uma história de mais de 50 milhões de anos de duração que levou ao surgimento das baleias, um grupo de mamíferos aquáticos que sempre intrigou e fascinou o homem.

Estevan, que estuda anfíbios fósseis do grupo Temnospondyli em seu pós-doutorado, disse ter decidido falar aos alunos dos programas sobre o passado evolutivo das baleias por se tratar de um grupo que não é alvo de sua linha de pesquisa e que sempre chamou sua atenção. “As baleias sempre causaram muito fascínio no homem por serem animais sociais, extremamente inteligentes e também por viverem no mar, mesmo sendo mamíferos”, contou.

As baleias modernas

Antes de falar sobre o surgimento do grupo, Estevan esclareceu um pouco mais sobre as características gerais das baleias. São mamíferos aquáticos, da ordem Cetacea. Possuem membros modificados em nadadeiras (ou seja, não possuem pernas), narina no teto do crânio e uma cauda com nadadeiras horizontais (o que diferencia a natação das baleias da natação dos peixes: enquanto aquelas nadam em movimentos ondulatórios, estes nadam em movimentos laterais). São cosmopolitas e se alimentam e se reproduzem na água (ocupando somente esse ambiente). Como regra geral, são carnívoras e alguns grupos apresentam ecolocalização, emitindo ondas sonoras a fim de mapear o ambiente a sua volta.

As baleias modernas (Neoceti) são divididas em dois grupos (subordens), os Odontoceti (por exemplo: baleia-orca, golfinhos, botos, cachalotes) e os Mysticeti (por exemplo: baleia-azul, baleia-jubarte, baleia-franca) que são as baleias sem dentes e que possuem barbatanas, sendo animais filtradores de plâncton.

Por pertencer à classe dos mamíferos, um grupo tipicamente terrestre, estando tão bem adaptados ao ambiente marinho, esses animais incitam diversos questionamentos sobre suas origens: evoluíram a partir de que ancestral? Seu ancestral também era aquático ou era terrestre? O ancestral possuía pernas?Segundo Estevan, essas e outras respostas cabem à Paleontologia responder. “E, para reconstruir o passado, nós iremos partir do presente”, afirmou ele.

 

Uma questão de parentesco

Quando questionados qual animal seria o parente vivo mais próximo das baleias, os alunos fizeram diversas suposições.“Tubarão”. “Mas tubarão é peixe”, comentou Estevan. “Golfinho”. “Mas golfinho faz parte do grupo, ele é considerado uma baleia”, esclareceu ele. “Leão-marinho”. “Peixe-boi”. “Elefante”
Segundo o paleontólogo, os hipopótamos são os parentes mais próximos das baleias que vivem atualmente. Isso foi desvendado a partir da década de 50, quando alguns cientistas realizaram testes imunológicos e genéticos e detectaram um alto grau de proximidade entre os dois grupos. Os hipopótamos fazem parte da ordem Artiodactyla, um grupo de mamíferos com a pata fendida que também inclui os porcos, camelos, girafas, lhamas, dentre outros.
O pesquisador esclareceu, logo de início, que isso não significa que as baleias vieram dos hipopótamos nem vice-e-versa. Isso significa que, no passado, esses dois grupos, cetáceos e artiodátilos, compartilharam um ancestral em comum. “É como se eu dissesse que eu e outra pessoa tivéssemos o mesmo avô”, explicou ele.

Árvore filogenética
Uma árvore filogenética (ou cladograma) é uma representação gráfica do grau de parentesco de dois grupos, e uma ferramenta muito utilizada pela sistemática. No exemplo ao lado, um cladograma simples mostra as relações entre três grupos (que podem ser espécies, gêneros, classes, ordens,…): A, B e C. No caso, A e B possuem um grau de parentesco mais próximo do que A com C e B com C. De fato, A + B possuem um mesmo ancestral em comum (representado pela intersecção entre as duas retas). Diz-se que A + B formam um grupo monofilético, exatamente por compartilharem um mesmo ancestral. A + B + C também formam um grupo monofilético, porém cujo ancestral em comum é mais antigo do que aquele exclusivo de A e B. Já o grupo C pode ser considerado um grupo parafilético, uma vez que não compartilha ancestral exclusivo: seu ancestral também é compartilhado por A e B.

Hoje em dia, se sabe que cetáceos e artiodátilos formam um grupo monofilético, Cetartiodacytla (Cetacea + Artiodactyla) e que o hipopótamo é o representante vivo mais próximo dos Cetacea (as baleias). Uma das características mais marcantes dos artiodátilos é sua pata fendida. Assim, como os cientistas conseguiram achar semelhanças entre esses dois grupos, se as baleias não possuem pernas? É aí que entra a paleontologia!

“Eu gostaria de saber se a gente pode comparar as nadadeiras das baleias com as patas dos hipopótamos como estruturas análogas.”
Estevan: A gente pode interpretá-las como estruturas homólogas porque esses animais possuem uma relação de parentesco. Seriam análogas se a gente comparasse a nadadeira de uma baleia com a nadadeira de um peixe, por exemplo. Elas não compartilham as mesmas estruturas. Se você analisar a nadadeira de uma baleia, ela possui estruturas que inclusive nós temos: um úmero, um rádio, uma ulna e os elementos dos dígitos. Pode-se dizer, por exemplo, que a nadadeira da baleia é homóloga à asa de uma ave, por possuírem um parentesco e terem saído de uma mesma estrutura.

Uma história sobre a história evolutiva das baleias
Na década de 1830 foi descrito um fóssil de um animal que viveu na América do Norte, África e Eurásia há cerca de 35 milhões de ano. Basilosaurussignifica “lagarto-rei”, já que uma vez descoberto acreditava-se tratar de um exemplar dos répteis. Porém, quando um importante anatomista da época, Richard Owen (famoso por ser um dos opositores às ideias de Darwin sobre a evolução das espécies), teve acesso ao fóssil encontrado, ele afirmou que se tratava de um mamífero! Naquela altura, apenas a mandíbula do animal havia sido descoberta, porém esse osso permite fazer grandes inferências sobre o animal como um todo, uma vez que a dentição é uma característica bastante determinante dos mamíferos.
Foi só em meados de 1970 que novos fósseis desse animal foram encontrados. No Egito, uma ossada com mais estruturas foi escavada, revelando mais detalhes sobre a pélvis, a perna e os dedos do “lagarto-rei” que não era lagarto. Estimou-se que tinha vivido há cerca de 40 milhões de anos na região que, embora hoje seja deserta, tenha sido, à época, uma baía de águas salgadas. Estabeleceu-se que aquele se tratava de um ancestral próximo das baleias, já extinto. Nessa altura, o parentesco entre baleias e hipopótamos já estava ficando mais claro, o que permitiu posicionar o Basilosaurus entre esses dois grupos.
Foi no Paquistão, um país asiático, que grandes avanços foram feitos na história evolutiva desse grupo. Em 1983, um animal fóssil, o Pakicetus, foi descrito. Possuía um crânio semelhante ao de uma baleia, porém com patas. Em 1994, foi encontrado em depósitos marinhos do Eoceno Médio, nesse mesmo país, fóssil de uma nova espécie, o Ambulocetus, um animal maior e mais bem adaptado ao ambiente aquático, que possuía membros menores (com capacidade propulsora), embora ainda funcionais em terra. Possuíam um hábito semelhante ao dos leões-marinhos, se alimentando em água, porém ainda dependentes do ambiente terrestre para reprodução. Quatro anos depois, paleontólogos encontraram mandíbulas que foram suficientes para inferir a gradual adaptação à vida na água pertencentes ao Hymalayocetus, uma espécie com características semelhantes aos artiodátilos.
Nesse mesmo ano, foi descrito também no Paquistão o Rodhocetus, um animal com muitas familiaridades ao Pakicetus e que já apresentavam narina já no meio do crânio, indicando que teriam vivido na água e colocavam a cabeça para fora para respirar (semelhante ao que fazem as baleias). Acredita-se que esses animais exploravam maiores profundidades do ambiente marinho por possuírem patas reduzidas e outras características.
Muitas outras espécies foram descritas, mas, segundo Estevan, essas foram as principais e mais determinantes para se traçar a história evolutiva das baleias.

 

A reconstrução do passado das baleias
Hoje se acredita que os basilosarídeos tenham constituído um grupo muito semelhante ao das baleias, o que indica que eles tenham sido o ancestral mais recente das baleias modernas. Foram extintos há cerca de 35 milhões de anos, época à qual são atribuídos os primeiros registros fósseis das baleias modernas.

Os ancestrais da baleia, que são semiaquáticos, poderiam também ter dado origem a uma tartaruga, que também é um animal semiaquático?

 

Estevan: Existem outros mamíferos que também invadiram o ambiente aquático e que, não necessariamente, vieram do mesmo ancestral que as baleias. Por exemplo, o peixe-boi também possui um ancestral que saiu do ambiente terrestre e invadiu o ambiente aquático, mas isso não quer dizer que o ancestral seja o mesmo que o da baleia – aparentados diretamente. Eles são animais que convergem, ou seja, eles passaram a viver em um mesmo ambiente, sem necessariamente possuir uma relação de parentesco direto (eles são parentes em certo grau por serem mamíferos!)… mas é o mesmo que acontece com outros animais, como a lontra, que é um mamífero… ou as tartarugas, que são répteis. Invadir um mesmo ambiente, portanto, não quer dizer que eles são necessariamente aparentados. Isso seria uma convergência.

 

E, atualmente, pode acontecer com que essas pernas da baleia se desenvolvam novamente? Você disse que elas ainda têm e que em algumas não ossifica, mas pode acontecer de voltarem…?

 

Estevan: Essa é uma pergunta que eu não saberia afirmar. Do futuro nada sei, portanto qualquer coisa que eu dissesse seria um chute. Mas as baleias são animais tão especializados ao ambiente aquático que se, por acaso, houvesse alguma mudança ambiental que exigisse que esses animais voltassem a usar as pernas, elas provavelmente morreriam – que é o que acontece quando uma baleia fica presa na praia e não consegue voltar para o mar. Eu acho que o caminho evolutivo que as baleias seguiram não tem volta, porque está tão reduzido, tão vestigial, que eu acho improvável depender disso. Mas como eu falei, são especulações.

Segundo Estevan, essa reconstrução da história evolutiva das baleias permite algumas conclusões gerais sobre o próprio processo da evolução biológica. Primeiramente, é possível observar tendências evolutivas claras através das mudanças que ocorreram através do tempo: migração posterior da narina, que vai da ponta do crânio para o teto; e a redução das patas, que eram funcionais em espécies mais antigas e que se tornaram bastante reduzidas ou vestigiais em espécies atuais.
A evolução, que nada mais é do que um processo de mudança das espécies ao longo do tempo, pode ser mais bem compreendida através do estudo de fósseis intermediários que retratam as mudanças anatômicas do grupo desde seu surgimento. Além disso, não ocorre de forma direcional: os mamíferos fazem parte dos tetrápodes – incluindo também anfíbios, “répteis” (parafilético) e aves – um grupo de vertebrados que saiu do ambiente aquático e ocupou o ambiente terrestre, de forma que caso das baleias mostra o movimento contrário: um grupo de mamíferos (que são tetrápodes e, portanto, terrestres) voltando a ter hábito aquático.

Você poderia dizer como que acontece a evolução dos animais na água? Se eu colocar um leão na água, não é na hora que ele vai conseguir respirar.

 

Estevan: Isso é ao longo de muitas e muitas gerações. Não é colocando o animal na água que eu vou forçá-lo a evoluir e se tornar um animal aquático. Isso acontece ao longo de muitas e muitas gerações…

 

Você acha que o ser humano ainda pode evoluir mais?

 

Estevan: O ser humano vai evoluir mais, assim como todos os outros seres vivos. Todos evoluem, seja para um caminho ou para outro. O que eu quis passar nessa palestra é que não há direção, mas que todos evoluem para algum caminho. Só não é possível prever qual…

Quando uma das alunas perguntou se as baleias extintas eram mais ou menos inteligentes do que as baleias modernas, Estevan mostrou uma das fraquezas e das belezas da Paleontologia. Segundo ele, é bastante difícil determinar alguns aspectos a partir do registro fóssil como, por exemplo, capacidade cognitiva. Apesar disso, fica bem claro, ao fim da fala do pesquisador, o alcance da Paleontologia como ciência capaz de nos fazer voltar milhões de anos no tempo e saber como era a vida naquela época. E, acima de tudo, nos permite discutir como surgiram as formas de vida que vemos hoje – em outras palavras (mais antropocêntricas!): quem somos nós e de onde viemos?


Espaço dos alunos

 A partir da análise das filipetas do encontro, a equipe da Casa da Ciência produziu este infográfico destacando as principais dúvidas manifestadas pelos alunos e os principais conceitos aprendidos no encontro. A finalidade deste instrumento é a avaliação dos momentos de aprendizagem do aluno e valorização da sua dúvida.

  


Texto

Autoria: Vinicius Anelli

Edição: Dr. Estevan Eltink

Revisão: Profa. Dra. Marisa Ramos Barbieri e Gisele Oliveira

 

Espaço dos alunos

Análise de filipetas: Luciana Silva

Infográfico: Vinicius Anelli

 

Diagramação

Vinicius Anelli