Uso de Animais de Laboratório na Pesquisa Biomédica

Muitos dos pós-graduandos e professores que vêm ao Adote um Cientista contar aos alunos do programa um pouco mais sobre seu trabalho utilizam animais em suas pesquisas. Seja para testes de toxicidade, verificar a eficácia de um medicamento ou mesmo para estudar a biologia de algum animal. O uso de animais na pesquisa é uma realidade e pode ser encontrado em laboratórios do mundo todo.

Quando Cleide Silva, veterinária e gerente do biotério do Hemocentro de Ribeirão Preto, contou aos alunos do Adote um pouco mais sobre o que faz e a importância de seu trabalho, ela também levantou uma reflexão que é bastante atual: afinal, utilizar ou não animais para a pesquisa?

 

Um breve histórico sobre a experimentação animal

Cleide, que possui dez anos de experiência na área, iniciou sua fala contextualizando um pouco mais o uso de animais para pesquisa ao longo da história da ciência. Registros de 300 a.C. indicam que Hipócrates fazia dissecção em animais. Aristóteles e Erasistratus também estariam entre os primeiros a experimentar com animais, na Grécia Antiga.

Mas foi apenas com o Renascimento e com o advento da Idade Moderna que estudos de autópsias e de dissecções começaram a tomar proporções maiores, o que conduziu as investigações da fisiologia e da anatomia, sendo retomada a prática da experimentação animal. Isso trouxe grandes avanços para a fisiologia, dada a importância dessa prática no conhecimento de funções corporais. De fato, em 1665 foi feita a primeira transfusão de sangue (cão-cão), o que representa um marco na aplicação terapêutica dos conhecimentos fisiológicos.

Mas o embate entre vivisseccionistas e anti-vivisseccionistas explode por volta do século XVIII, quando Descartes já propunha uma reflexão sobre a questão. Segundo ele, “animais e homens são máquinas automáticas que obedecem às leis mecânicas”, porém o homem difere dos animais por possuir inteligência e alma – ou seja, os animais não sentem dor por não possuírem esses atributos. Esse posicionamento suscitou uma discussão fervorosa sobre a existência ou não de dor em animais, o que refletia diretamente no embate entre pró e anti-vivisseccionistas.

De fato, Claude Bernard, um dos pais da fisiologia experimental defendia que experimentos com animais são bastante conclusivos, uma vez que os efeitos observados em estudos toxicológicos com animais eram os mesmos observados em seres humanos, com alguns pequenos ajustes. Essa discussão, que se iniciou de forma acalorada entre cientistas, ainda persiste na sociedade nos dias de hoje.

Embora tenha ocorrido apenas em meados do século XIX, os trabalhos de Charles Darwin acabam renovando esse embate, uma vez que questiona a posição do ser humano em relação aos outros seres vivos, até então colocado em um pedestal elevado como o protagonista da Criação, e o coloca como mais um animal dentre as muitas espécies que habitam o planeta.

 

Ciência de Animais de Laboratório (CAL)

Essa discussão é tão fervorosa e tão importante que, atualmente, existe um ramo da ciência responsável por estudar tudo que se relaciona a animais de experimentação. Cleide explicou que essa área do conhecimento abrange tudo que concerne os animais utilizados em laboratório: as espécies, as características e peculiaridades zootécnicas, sua genética, condições sanitárias, métodos de produção e de obtenção, além do seu manejo e manutenção. Além disso, cabe à CAL estudar e discutir as diferentes metodologias utilizadas em experimentos, verificando sua eficácia, o que precisa ser melhorado e possíveis alternativas.

Cleide nomeou, então, algumas das principais espécies utilizadas em experimentação. Os roedores clássicos são os mais comuns, sendo eles os camundongos, ratos, cobaias (porquinhos-da-índia) e hamsters. Coelhos, cães, gatos, bovinos, suínos, caprinos, ovinos, primatas não-humanos, rãs e alguns invertebrados também foram citados.

 

Aluno: Aqui em Ribeirão Preto, os biotérios utilizam quantos tipos de animais?
Cleide: Em primeiro lugar, camundongo – 90% dos estudos utilizam camundongos. Depois rato, cobaia, hamster, coelho. Temos pouco uso de bovinos e de cães… mas a grande maioria é camundongos mesmo. O que segue a tendência mundial. Por quê? Porque o camundongo é pequeno, podendo ser facilmente alojado – o que implica em menor custo, maior número de animais disponíveis. São fáceis de manipular, são mais dóceis… além disso, em um ano, você consegue ter 5, 6 gerações, o que é muito vantajoso se comparado com outros animais que têm gestação e período de maturação mais longos.

Mas e o homem?”, ela questionou.

Segundo a veterinária, após os horrores da 2ª Guerra Mundial, foi estabelecido o código de Nuremberg (em 1947) que postulou diretrizes para a experimentação com seres humanos. Dentre essas diretrizes, determinou-se que experimentos em seres humanos deveriam se basear em experimentos em animais. Alguns anos depois, em 1964, a Declaração de Helsinque regulamentou as normas e as condições para a experimentação em seres humanos, o que, atualmente, cabe ao Conselho de Ética das instituições de pesquisa.

 

Leis aplicáveis à CAL

No Brasil, a Lei Arouca (de 2008) criou o CONCEA (Conselho Nacional de Controle da Experimentação Animal), responsável pela regulação da criação, experimentação e manutenção de animais de laboratório (deve-se ressaltar aqui que essas diretrizes são aplicáveis a animais vertebrados, exceto humanos). Embora represente um avanço na ciência brasileira, a instituição de um conselho para regulamentação da experimentação em animais ocorre bem tarde no Brasil, existindo na Inglaterra desde o século XVIII e em outros países há muitos anos.

Foram instituídas várias resoluções concernentes à utilização de animais em experimentos e também para fins educacionais, em escolas e em instituições de ensino superior. Foi a partir dessa lei que se regulamentou o papel das CEUAs, que são Comissões de Ética no Uso de Animais, que se tornaram obrigatórias para instituições que pretendem usar animais para fins didáticos e experimentais. Todo projeto de pesquisa precisa ser avaliado e aprovado pela CEUA de sua instituição e isso será feito tendo em vista a ética e o bem estar animal, prezando pelo menor sofrimento, estresse e desconforto do animal utilizado e buscando-se alternativas que possam substituir o uso de animais na pesquisa. Cleide deu como exemplo o uso cada vez mais crescente de membranas celulares sintéticas em estudos de toxicidade de substâncias no olho, que ainda utiliza muitos animais para isso.

Assim, a aprovação de um projeto de pesquisa que utilizará animais de laboratório segue os preceitos estabelecidos pela Diretriz Brasileira para o Cuidado e a Utilização de Animais para Fins Científicos e Didáticos (a DBCA). Da mesma forma, a utilização de animais em sala de aula de escolas de rede básica e de universidade também deve ser avaliada, aprovada e regulamentada pelas CEUAs.

Aluno: Se a questão for, por exemplo, o animal sentir dor e ele passar por estresse é um problema, então por que não utilizar aquele ratinho que foi desenvolvido, se não me engano na Alemanha, que modificaram os genes dele para ele nascer sem cérebro e, por isso, ele não tem reação, não tem consciência entre aspas. Por que não?
Cleide: Olha, eu não tenho conhecimento desse camundongo. (…) Mas eu não sei quais as implicações do uso de um animal tão modificado assim para a pesquisa. A gente busca o animal cujas condições estejam mais próximas do normal para poder testá-lo (…).

 

Os biotérios

Cleide contou aos alunos, então, um pouco mais sobre sua rotina no Biotério do Hemocentro de Ribeirão Preto. Ela disse que, no Brasil, grande parte dos biotérios está nas instituições de ensino superior e que eles podem ser de três tipos, de acordo com sua função: de criação (onde os animais são reproduzidos), de manutenção (onde são mantidos e manejados, porém ainda sem se envolver em experimentos) e de experimentação.

A veterinária contou um pouco mais sobre a importância de se manter um padrão nas condições de criação e de manutenção desses animais. Ela disse que além da vestimenta apropriada para quem trabalha no biotério, são também mantidas com bastante rigor as condições macro e microambientais.

As salas onde são armazenados os animais possuem filtros de ar, controle rígido de temperatura (22-24ºC) e umidade, além de se evitar ruídos e odores – não sendo permitido consumir alimentos ou beber líquidos dentro das salas e nem mesmo utilizar perfumes ou maquiagens. Outro aspecto importante é o cuidado para não se armazenar espécies diferentes em uma mesma sala, uma vez que isso pode gerar desconforto e estresse entre os animais. “Ás vezes uma espécie sente o cheiro da outra e essas espécies são presa-predador na natureza, o que vai deixar os animais bastante estressados. Aqui no biotério do Hemocentro, porém, nós temos apenas camundongos, portanto isso não é um problema”, contou. A iluminação é controlada também, uma vez que deve ser mantido o ciclo dia/noite (12/12 horas), já que esse ciclo varia ao longo do ano e deve ser padronizado para animais de laboratório.

Cleide contou que as condições dentro das gaiolas são mantidas com bastante cuidado também. Ela disse que as gaiolas são lavadas e trocadas 2 vezes por semana e que tudo deve estar esterilizado antes da utilização – inclusive as rações.

Aluno 1: No caso da ração, existe alguma específica?
Cleide: Existe sim! Para o roedor, por exemplo, é ração produzida para animais de laboratório que é balanceada e que será esterilizada antes de ser ministrada nos animais (…).
Aluno 2: Mas ao esterilizar a ração, isso não prejudica o animal?
Cleide: Sim, mas isso depende do método utilizado. A gente utiliza uma temperatura bem elevada para esterilizar a ração. Mesmo assim, alguns elementos são inativados, como algumas vitaminas.

O enriquecimento ambiental também é bastante importante, e ela contou que no biotério eles utilizam tubos de papelão (daqueles encontrados em rolos de papel higiênicos e que também são esterilizados antes da utilização!) que os animais utilizam para roer, construir ninhos e se abrigar.

Aluno: Por terem sido criados em laboratório, quando você vai testar uma vacina ou algo do tipo, por exemplo, ele não pode ter uma reação diferente da de um animal criado naturalmente…?
Cleide: Muito boa pergunta. (…) Esses animais vêm sido criados e vão se acasalando em laboratório mesmo, de forma que se conhece muito bem a genética deles. Tanto que os camundongos são, em sua maioria, albinos – o que não é comum na natureza. (…) Em todos os estudos feitos até hoje, não houve nenhuma contraindicação, nesse sentido, para o uso dessas linhagens de animais. E como eles possuem uma genética bastante estudada e conhecida, são recomendados para pesquisa. Há estudos que já buscam responder exatamente essa sua pergunta, se há alguma diferença entre essas linhagens e os animais selvagens.

Utilizar ou não?

Cleide frisou que as normas para a experimentação são bastante rígidas. Por exemplo, detalhes como o volume de sangue de pode ser coletado para testes, a quantidade de substância a ser injetada, o local do procedimento e a utilização de anestesia e de analgesia são pré-definidos e rigorosamente controlados.

Aluno: Além das injeções com substâncias, vocês também utilizam a ração?
Cleide: Existem alguns protocolos que ministram drogas através da ração, mas isso é um pouco complicado porque não se sabe quanto da droga o animal ingeriu. Mas existem sim esses protocolos.

Quando um dos alunos perguntou se, após o fim dos experimentos os animais são soltos, Cleide falou que na maioria das vezes, pelo menos com camundongos, esses animais sofrem eutanásia e morrem. Isso é feito injetando-se uma dose de alta concentração de anestesia, que é uma forma aceitável e regulamentada de se proceder, o que levará o animal a adormecer e, posteriormente, ao óbito.

Ela disse que há uma discussão bastante fervorosa ainda hoje sobre a utilização de animais em pesquisas e que isso se iniciou lá no século XVII, com Descartes. E também alertou para que os alunos tomassem cuidado com posicionamentos extremistas e divulgação na internet e nas mídias de mitos e de mentiras envolvendo o uso de animais de laboratório. Também foi falado que ONGs de proteção e de bem estar animal, muitas vezes, levantam questionamentos pertinentes e aos quais o pesquisador deve estar preparado em responder. De fato, é instituído que pelo menos um dos membros das CEUAs seja o integrante de alguma ONG, mostrando sua importância nesse cenário.

Cleide encerrou sua fala mostrando um infográfico que reúne as grandes conquistas da medicina que só foram possíveis a partir da experimentação animal e pedindo que os alunos, enfim, opinassem sobre a questão: “Vocês são a favor ou contra o uso de animais na experimentação e para fins didáticos?”. 52% dos alunos presentes naquela tarde afirmaram ser a favor do uso, destacando os benefícios para a pesquisa; 20% se posicionaram contra o uso de animar de laboratório, chegando a afirma que é “um desrespeito ao animal”; 16% dos alunos não se posicionaram a favor nem contra, destacando benefícios e problemas; e 12% dos alunos não opinaram.

De fato, o tema trazido pela veterinária Cleide Silva no encontro é bastante complexo e polêmico, embora ela tenha mostrado os dois lados de uma mesma questão. Para alunos de graduação em cursos de Biológicas, a experimentação animal é um fato cotidiano e que gera bastante controvérsia. Nesse sentido, o Adote um Cientista do dia 2 de abril se destaca por apresentar aos alunos do programa um tema acadêmico que é muito pertinente fora dos muros das instituições de pesquisa, mas tomando-se o cuidado de oferecer à sociedade fatos e argumentos concretos, cientificamente embasados, a favor ou contra o uso de animais na pesquisa biomédica.


Espaço dos alunos

 A partir da análise das filipetas do encontro, a equipe da Casa da Ciência produziu este infográfico destacando as principais dúvidas manifestadas pelos alunos e os principais conceitos aprendidos no encontro. A finalidade deste instrumento é a avaliação dos momentos de aprendizagem do aluno e valorização da sua dúvida.

  


Texto

Autoria: Vinicius Anelli

Edição: Cleide Silva

Revisão: Profa. Dra. Marisa Ramos Barbieri e Gisele Oliveira

Espaço dos alunos

Análise de filipetas: Luciana Silva

Infográfico: Vinicius Anelli

 

Diagramação

Vinicius Anelli