“Cerca de um quinto da população humana perecerá de câncer. As células cancerosas violam as regras mais básicas de comportamento pelas quais os organismos multicelulares são construídos e mantidos. No estudo dessas transgressões, é possível que descubramos quais são as regras normais e como elas são mantidas. Daí sua importância não apenas clínica, mas para o estudo da biologia celular”.
(Adaptado de Biologia Molecular da Célula, 5ª Edição)

O grande problema do câncer é que os tumores se espalham. De fato, essa é uma característica tão mortífera que 90% das mortes pela doença são causadas por esse motivo. Lucas Souza, ex-aluno da Casa da Ciência e atualmente no doutorando pelo programa de Oncologia Clínica, Células-Tronco e Terapia Celular (FMRP-USP), contou aos alunos do Adote um pouco sobre como os tumores se espalham e o quão difícil é para que isso aconteça.

A manutenção de um organismo multicelular, em nível de sua organização tecidual, é bastante simples. As células somáticas crescem, se reproduzem por divisão celular e morrem. Essa é uma ideia bastante clara para os pesquisadores hoje em dia e esta organização garante a sobrevivência dos organismos multicelulares. De fato, as células somáticas regulam-se umas às outras, de tal forma que células vizinhas ou mesmo distantes podem influenciar no ciclo de vida de outras células. E ao contrário do que acontece em organismos unicelulares, não é a sobrevivência de uma célula o que mais importa, mas sim a sobrevivência do grupo de células como um todo. 
Porém, algumas células podem fugir desse controle de crescimento. Isso ocorre principalmente devido a mutações no material genético do núcleo, de tal forma que a célula transgressora para de responder aos estímulos das vizinhas e passa a crescer indefinidamente. A esse processo dá-se o nome de neoplasia (neo=novo; plasia=crescimento) e é a principal característica dos tumores.
Por volta de 400 a.C., na Grécia, Hipócrates já havia descrito nódulos que observara em cadáveres, identificando vasos sanguíneos e um formato característico que associara a um crustáceo bastante comum em seu país: a palavra câncer vem do latim (cancer) e seu significado remete ao grego, carcinus, que significa caranguejo. 
Um tumor pode surgir a partir de qualquer tipo celular, porém, segundo Lucas, 80% das mortes por câncer são causadas por um tipo específico de tumor que possui origem em células epiteliais, o carcinoma.

Lucas contou que nossas células podem ser divididas em dois grupos:
Células epiteliais: são células fortemente aderidas umas às outras através de proteínas (tal como as caderinas) que facilitam essa adesão. Encontradas na superfície da pele, no tubo gastrointestinal e no revestimento de outros órgãos; e
Células mesenquimais: são células de preenchimento, fibroblastos alongados com pouca adesão entre si e que possuem certa mobilidade.

Podemos classificar todas as células dessa forma?
Lucas: Na verdade essa é uma classificação muito simples. Basicamente, é uma classificação que está relacionada à forma e não à função: epitelial é a célula que se adere à outra, mesenquimal é aquela que não se une. Existem outros tipos de células, como as musculares e as neurais. Mas esses são dois grandes grupos que temos no nosso corpo.

Mas nem todo tumor é mortal. Alguns tumores são caracterizados por células que se mantém fortemente aderidas umas às outras, de tal forma que isso lhe propicia uma forma bem definida, não ocorrendo espalhamento nem invasão de outros tecidos. Esses tumores, chamados de tumores “benignos”, podem ficar em nosso corpo por anos e não causar nenhum prejuízo considerável, podendo ser removidos por cirurgia. O problema, segundo o pesquisador, é quando um tumor “maligno” se desenvolve. Esses são tumores extremamente danosos, cujo crescimento é descontrolado e que pode acabar invadindo outros tecidos, formando as chamadas metástases. O espalhamento das células tumorais para outro tecido é uma característica importante do câncer como doença e as metástases são responsáveis por 90% das mortes por câncer.
Lucas questionou, então, como os tumores podem gerar cópias suas em outros tecidos. “(Isso acontece) quando um pedaço do tumor entra na corrente sanguínea e vai entrando em outras partes, já que o sangue passa pelas células e se espalha pelo corpo”, sugeriu uma das alunas.

“A quimioterapia funciona como? Ela mata a célula ou retarda seu crescimento?”
Lucas: A quimioterapia consiste de uma série de medicamentos que são mais tóxicos para as células tumorais. A intenção é matar as células. O problema é que esse tratamento pode não ser efetivo. A questão aí é: como matar as células tumorais e não as células normais? Existem várias estratégias. Por exemplo, células que crescem mais são mais sensíveis a esses tratamentos e à própria radioterapia. O caso é que recentemente se descobriu que dentro do tumor, as células não crescem de maneira igual, e existem células que ficam dormentes, que são as células-tronco tumorais. E essas células não são facilmente mortas pelo tratamento, de forma que elas podem permanecer e, após algum tempo, o tumor retornar. Alguns especialistas, por isso, acreditam ser melhor tentar retardar o crescimento do que matar tudo. Isso porque, imagine que você tem mil células tumorais, e 10 delas crescem lentamente. Se você aplica um tratamento pesado, você mata todas menos essas 10 células, que são resistentes. Elas vão continuar crescendo e, após um tempo, você terá 1000 novas células resistentes nesse tumor, tornando o tratamento muito mais difícil.

 

“Por que o cabelo cai na quimioterapia?”
Lucas: Porque o medicamento acaba atingindo outras células que não as tumorais. Em geral, são células que crescem muito: as células sanguíneas, do intestino e do bulbo capilar. É como se fosse um alvo inespecífico, um efeito colateral, uma vez que o medicamento circula pelo corpo todo – matando as células tumorais, mas também outras células – porque não é possível, ainda, atingir apenas o tumor especificamente.

O processo da metástase
O pesquisador explicou, então, como uma das células do tumor pode se desprender, cair na corrente sanguínea e se implantar em outra região ou tecido, formando uma metástase. Ele utilizou, como modelo, o carcinoma.
O carcinoma é um tumor de origem epitelial, cujo crescimento inicial é delimitado pela membrana basal, uma parede proteica que impede que as células passem e saiam do tecido. Quando o tumor é maligno, essa massa celular é capaz de produzir proteases, que são enzimas capazes de quebrar proteínas, ultrapassando a barreira proteica da membrana basal e adentrando a matriz do colágeno. A esse processo dá-se o nome de invasão e, uma vez vencida a parede de proteínas, as células tumorais podem cair na circulação, sanguínea ou linfática. A circulação venosa é o principal meio de transporte da célula tumoral invasiva, uma vez que as veias são vasos mais finos e, portanto, mais fáceis de ser penetrados do que as artérias. Além disso, é interessante notar que a circulação venosa passa pelos pulmões, onde os vasos vão se ramificando e ficando cada vez mais finos, formando os capilares, que são vasos extremamente pequenos e finos. Eventualmente, uma célula tumoral pode ficar “entalada” nesses capilares. Isso faz com que ela se aloje naquela região. Isso explica porque é tão comum encontrarmos metástases de carcinoma no pulmão, já que as células cancerosas que caem na circulação sanguínea acabam ficando presas nos capilares pulmonares. Lucas deu o exemplo de uma célula tumoral de 20 micrômetros que, enquanto transita pelos vasos sanguíneos, acaba por cair em um capilar, cujo diâmetro varia de 5 a 7 micrômetros, de forma que essa célula não consegue passar. 
A célula que está “entalada” no capilar pode permanecer ali, se multiplicando e, eventualmente rompendo esse vaso ou sair do vaso e adentrar o tecido ao redor. A esse processo dá-se o nome de extravaso, e é o momento mais limitante para que um tumor se espalhe. De fato, um tumor maligno lança várias células tumorais por dia na corrente sanguínea, porém apenas uma pequena porcentagem delas poderá se implantar em outro tecido. Isso porque a célula tumoral precisa de estímulo do tecido que poderá ser invadido para que ela possa crescer ali. Essa é uma descoberta recente da oncologia que deixou claro para médicos e pesquisadores o quão difícil é para um tumor maligno gerar metástases. De fato, Lucas esclareceu que metástase não é somente a ida da célula tumoral à corrente sanguínea, mas sim sua implantação (com eventual crescimento) em outro tecido.

“A partir do momento que a célula sai do vaso, quanto tempo demora para que o tumor possa ser diagnosticado?”
Lucas: Na verdade, essa célula pode ficar dormente a vida inteira. E é muito interessante, porque um estudo com pessoas que morreram em acidentes indicou que, aos 40 anos, 35% dos homens já possuem micrometástases em algumas regiões do corpo. Como eu falei, essa é uma fase muito limitante, pode ser que aquela célula que obstruiu o vaso nunca venha a formar uma metástase. Por outro lado, isso pode acontecer muito rapidamente: um tumor, em média, é detectável a partir de 10 anos após ele ter conseguido uma colonização efetiva. Porque é difícil detectar uma massa celular pequena e, em geral, isso é feito através de um corte. E os médicos não irão fazer esse exame, não irão pedir a biópsia, a não ser que haja sintomas, e os sintomas indicam um tumor mais avançado. E o desafio é detectar esses tumores o mais rápido possível. Há, inclusive, casos clínicos de doação de órgão. Por exemplo, eu doei um rim para você e, para você receber esse órgão, você passa por um tratamento que suprime seu sistema imunológico, de forma que, em alguns casos, o rim doado desenvolve um tumor – que, às vezes, é um melanoma, que é um câncer de pele (ou seja, uma célula que estava dormente). E é interessante, porque quanto mais avançada sua idade, maior a probabilidade de você ter tido um tumor ou uma micrometástase.

O câncer e o embrião da galinha
Para que isso que a implantação em outro tecido aconteça, Lucas contou que a célula tumoral não adquire uma nova habilidade. O que ocorre, de fato, é que essa célula reinventa um mecanismo importante para que a invasão ocorra. Esse mecanismo não foi desvendado por oncologistas, mas sim por uma embriologista que estudava o embrião da galinha. Foi através de estudos da embriogênese que se esclareceu como a célula tumoral, que possui características epiteliais (ou seja, alta aderência com as células vizinhas), deixa de ter essa adesão e se torna invasiva. Isso acontece graças à transição epitélio-mesenquimal, um mecanismo que remete à gastrulação – uma importante etapa do desenvolvimento do embrião.
Quando o espermatozoide fecunda o óvulo, forma-se o zigoto (também chamado ovo), que é uma única célula diploide, contendo os materiais genéticos maternos e paternos. O zigoto passa, então, a se dividir intensamente, em uma fase chamada de segmentação, durante a qual as células aumentam rapidamente de número, mas não de tamanho. É na fase seguinte, a gastrulação, que as células continuam se dividindo mas também aumentando de tamanho. Além disso, é nessa fase que as células, até então indiferenciadas, começam a se diferenciar, sendo as precursoras de todos os tipos celulares que o organismo terá após estar completamente formado.
Na gastrulação, o embrião deixa de ser uma camada celular bilaminada e desenvolve os três tecidos embrionários, que irão originar todos os tecidos e órgãos do indivíduo adulto: ectoderme, endoderme e mesoderme. A ectoderme é formada por células epiteliais fortemente aderidas umas às outras. Algumas dessas células perdem a aderência e se tornam células alongadas com capacidade migratória (células mesenquimais). Essas células migratórias darão origem aos outros dois tecidos embrionários, mesoderme e endoderme. É interessante notar, que essas células mesenquimais mantêm a capacidade de voltar ao seu estado original, tornando-se células epiteliais. 
Lucas contou que, no câncer, havia sido observado que as células da metástase eram epiteliais. Os pesquisadores perguntavam-se, então, como a célula tumoral epitelial se tornaria mesenquimal, para poder cair na circulação e se implantar em outro tecido e, uma vez implantada, voltaria ao seu estado epitelial. Graças a estudos da gastrulação, os pesquisadores perceberam que a células tumorais são capazes de recuperar o mecanismo de transição epitélio-mesenquimal que atua nas células embrionárias, o que permite que todo o processo de metástase ocorra.

 

O microambiente e o tumor
Um tumor, porém, não é formado apenas por células tumorais. Diversos outros tipos celulares e estruturas estão envolvidos, como vasos sanguíneos. De fato, isso levou os pesquisadores a se perguntar se o processo de invasão das células tumorais sofre influência dos outros tipos celulares.
Para isso, o doutorando contou aos alunos sobre um experimento que buscou responder essa pergunta. Para tal, células estromais da medula óssea, que também ocupam o microambiente de tumores, foram isoladas e cultivadas em meio de cultura líquido. Feito isso, este meio líquido foi retirado e reservado. Ele continha as diversas proteínas e outras substâncias produzidas por essas células. Verificou-se, então, qual o efeito de se colocar células tumorais (no caso, do melanoma) nesse meio líquido. O que se verificou foi que as células tumorais epiteliais adquiriam comportamento invasivo quando colocadas no meio líquido (tornando-se, portanto, células mesenquimais). Por sua vez, ao se retirar essas células mesenquimais do meio, elas retornavam ao seu estado epitelial inicial.

“Se, ao invés de se fazer um meio com as células mesenquimais do tumor, você escolhesse outras células, teria um crescimento igual ou diferente?”
Lucas: Algumas pessoas já estão investigando isso. Por exemplo, acreditava-se que a presença de macrófagos no tumor fosse um indicativo de que o macrófago estava atacando essas células. O que se descobriu foi que, em condições de hipóxia (ou seja, com baixa concentração de oxigênio), os macrófagos estimulam o surgimento de vasos sanguíneos: e o que vem com o sangue? Oxigênio, nutrientes, etc… Esse é um exemplo que indicava que cada célula pode ter um papel diferente.

Posteriores a esses estudos (que são experimentos in vitro) vieram testes in vivo em camundongos, utilizando uma linhagem de células tumorais bastante conhecida e invasiva, as células B16. Os testes confirmaram que, ao se ministrar apenas as células cancerosas no animal, havia menor surgimento de metástases do que quando se utilizava as células tumorais em conjunto com células estromais da medula óssea. Isso provou que o as células normais do microambiente tumoral são importantes para que a metástase ocorra, indicando que as células B16 são células tumorais agressivas porque respondem prontamente ao estímulo do microambiente e tornam-se invasivas.
Esse estudo, do qual Lucas fez parte e que trouxe grandes avanços para a oncologia, não só aumenta nosso conhecimento sobre os tumores, mas também nossa admiração pelos seus mecanismos de crescimento e invasão. De fato, essa é uma doença que pode trazer resultados catastróficos quando avançam, mas, ao mesmo tempo, que exibe mecanismos e estratégias admiráveis ao recuperar, por exemplo, uma importante capacidade celular sem a qual nosso desenvolvimento embrionário não seria o mesmo e que foi vital para que nosso crescimento, como organismos multicelulares, ocorresse…


Espaço dos alunos

A partir da análise das filipetas do encontro, a equipe da Casa da Ciência produziu este infográfico destacando as principais dúvidas manifestadas pelos alunos e os principais conceitos aprendidos no encontro. A finalidade deste instrumento é a avaliação dos momentos de aprendizagem do aluno e valorização da sua dúvida.


Texto

Autoria: Vinicius Anelli

Edição: Ms. Lucas Souza

Revisão: Profa. Dra. Marisa Ramos Barbieri, Gisele Oliveira e Fernando Trigo

 

Espaço dos alunos

Análise de filipetas: Luciana Silva

Infográfico: Vinicius Anelli

 

Diagramação

Vinicius Anelli