Série Doença de Gaucher – Enzimas e “Obesidade” Celular

A ausência de uma enzima específica pode levar ao acúmulo de lipídeos no interior de importantes células do nosso corpo, os macrófagos, resultando na manifestação da Doença de Gaucher.

Quanto tempo é necessário para digerir uma refeição?

Sabemos que a digestão poderia levar meses se não existissem mecanismos físico-químicos que aceleram (e muito!) a velocidade do processo. Com certeza, as personagens mais importantes são as enzimas. Estas proteínas são capazes de catalisar reações químicas, ou seja, facilitam e direcionam o seu acontecimento. Dessa forma, o alimento é quebrado rapidamente – apenas algumas horas – em elementos bem “pequenininhos”, que caem no sistema circulatório e são distribuídos para as nossas células. Em seu interior, no citoplasma, alguns compostos podem ser diretamente utilizados em processos fisiológicos da célula, como os aminoácidos, que podem ser utilizados na montagem de novas proteínas. Entretanto, outros compostos podem necessitar de quebras mais específicas. Para isso, os lisossomos envolvem os grandes compostos e realizam a sua digestão. Logicamente, existe um conjunto de elementos de endereçamento, que direciona quais compostos devem ser digeridos, evitando um grande caos para célula.

 

As enzimas são capazes de acelerar reações químicas. Neste exemplo, temos um açúcar – a sacarose – formado pela ligação de uma glicose com uma frutose. A enzima sacarase é capaz de quebrar a ligação estabelecida entre as duas unidades, liberando açúcares menores de fácil absorção. Proteínas, lipídeos e ácidos nucléicos também podem ser montados ou desmontados com o auxílio de enzimas específicas.

 

Proteínas sintetizadas nos ribossomos (presentes no retículo endoplasmático rugoso ou livres no citoplasma) são encaminhadas ao complexo de Golgi, onde ocorre a organização de diferentes vesículas. Uma delas são os lisossomos, importantes para a degradação de partículas sólidas

 

Os lisossomos

Os lisossomos foram descritos em 1955 por Christian de Duve, ganhador do prêmio Nobel de 1974 com essa descoberta. Por muito tempo os lisossomos foram considerados como uma organela responsável pela degradação de restos celulares. Em 2013, um importante artigo foi publicado na revista científica Nature Review Molecular Cell Biology e os autores destacaram a importância dos lisossomos em outros processos fundamen­tais, como secreção, reparo da membrana plasmática, sinaliza­ção e metabolismo energético.

Atualmente, existem cerca de 40 doenças genéticas resultantes da disfunção do lisossomo, isto é, devido a atividade deficiente de uma enzima lisossomal. A Doença de Gaucher é uma delas.

 

Duas faces de uma mesma célula

Nosso sistema imunológico é composto por diversas células de defesa, dentre elas os monócitos. Esses grandes glóbulos brancos, circulam pelos vasos sanguíneos à procura de corpos estranhos. Ao localizá-los, muda sua conformação e adquire algumas “habilidades” que pouquíssimas células possuem: a diapedese e a fagocitose. A primeira corresponde à capacidade de emitir projeções da membrana plasmática, que permitem atravessar as paredes dos vasos sanguíneos e alcançar os tecidos lesionados; já a segunda, corresponde à capacidade da célula, agora chamada de macrófago, de emitir pseudópodes para envolver e capturar pequenas partículas sólidas, como bactérias ou outros corpos estranhos. Da mesma forma que digerimos os alimentos, com auxílio de enzimas, os macrófagos também digerem as partículas capturadas pela fagocitose. Vários lisossomos se associam ao fagossomo, quebrando as moléculas grandes em menores, que são utilizadas em diferentes processos fisiológicos da célula.

 

Você sabia?

Os macrófagos foram descobertos em 1884, por Elie Metchnikoff, dois anos depois de Philippe Gaucher descobrir a Doença de Gaucher. Entretanto, a base genética da doença ficou conhecida apenas na década de 80, com a caracterização molecular do gene da glucocerebrosidase.

 

Mas os macrófagos conseguem digerir qualquer composto?

Para que ocorra a digestão das partículas, é necessário ter a enzima específica no interior do lisossomo. Por exemplo, para digerir a gordura glucosilceramida é necessária a presença da enzima β-glicocerebrosidase (GBA1) – também chamada de glucocerebrosidase. Se o gene de expressão dessa proteína não estiver ativado ou tiver alguma modificação, a célula não é capaz de quebrar essa gordura.

Esta é, basicamente, a causa da Doença de Gaucher: mutações no gene que expressa a glucocerebrosidase impedem a quebra da gordura glucosilceramida, que se acumula no interior do macrófago, impossibilitando o desempenho correto de funções.

Embora a GBA1 seja fundamental para a manifestação da patologia, sabe-se que outras proteínas, como as proteínas LIMP-2 (membrane protein type 2) e SAPC (saposin C), dão suporte a esta via de degradação da gordura glucosilceramida.

 

 

Para pensar:

Por que o macrófago não elimina por exocitose a gordura que não conseguiu digerir?

ISSN 2446-7227