A sociedade humana parece cada vez mais se afastar dos ambientes naturais, vivemos cercados pelos ambientes que nós mesmos criamos e tecnologias exclusivas deles. De maneira paradoxal, nossa alimentação talvez seja o maior exemplo de algo que nos afasta, enquanto nos aproxima de nosso estado original: pois, por um lado, perdemos, quase que totalmente, afinidade e conhecimento sobre de onde vêm os alimentos que consumimos e como eles são produzidos; por outro, se alimentar é um dos temas que mais provoca discussões sobre nosso papel na natureza, especificamente na cadeia alimentar, mesmo que de maneira equivocada, como constantemente ocorre ao lermos sobre dietas da moda. Se já não conhecemos muito sobre como nosso alimento é produzido, menos ainda sabemos sobre como impactamos ambientes naturais ao fazê-lo e sobre possíveis alternativas, mais sustentáveis, para reduzir este impacto. Mas vamos tentar saber mais sobre isso com calma e partir do princípio.
O que é uma cadeia alimentar?
As cadeias alimentares são as relações de alimentação que podemos observar nos ecossistemas, como, por exemplo, pardais perseguindo borboletas (Imagem). Mas a cadeia alimentar se inicia antes, com os produtores (no caso plantas que produzem o próprio alimento por meio do processo chamado “fotossíntese”), passando pelos consumidores (que incluem o pardal, mas antes dele a própria borboleta que se alimentou do néctar das plantas) e, por fim, terminando com os decompositores (microrganismos, como bactérias e fungos, que obtém seu alimento ao participar do processo de decomposição que ocorrem com os organismos após sua morte, sejam eles as plantas, as borboletas ou os pardais). O organismo que se alimenta é o consumidor e o que serve de alimento para outro é o recurso. Ainda, é importante lembrar que existe um certo balanço entre consumidores e o recurso disponível, e que alterações neste equilíbrio influenciam toda a cadeia alimentar. Por exemplo, se o número de consumidores primários diminuir (pardais), sobrarão mais produtores (plantas), agora com menos comida, e diminuirá o número de consumidores secundários (gatos), que encontram menor disponibilidade de presa para se alimentar.
Na realidade, isso é muito mais complexo quando observamos os ecossistemas. Não vemos cadeias alimentares lineares, mas complexas redes nas quais, por exemplo, nosso predador de topo, o gavião, come, além de galinhas, serpentes, grandes insetos e pequenos mamíferos. Além disso, outros animais carnívoros, como gatos e coiotes, também se alimentam de alguns desses animais (Imagem). Dessa forma, geralmente é melhor utilizar o termo teias alimentares, ou redes tróficas (“trófico” é um termo derivado de uma palavra grega, “trophus”, que significa “alimentação”). Perceba também que alterações bruscas em qualquer nível trófico de uma rede tem consequências muito complexas ao longo do ecossistema, alterando esse “equilíbrio” profundamente. Na maioria das vezes nós nem sequer conhecemos todos os seres vivos que existem em um ecossistema, menos ainda podemos dizer que conhecemos todas as suas relações tróficas ou demais interações ecológicas que podem existir.
O ser humano, como toda espécie, também faz parte de uma rede trófica. Contudo, como já discutido em outro Ciência em Foco, nós somos considerados por muitos cientistas como “superpredadores”, devido a nossa capacidade de integrar como predador de topo de cadeia diversas redes tróficas, inclusive em ecossistemas aos quais não pertencemos originalmente (como mares e oceanos) (https://www.casadaciencia.com.br/um-porque-conservar-a-natureza/). Ainda assim, nesta edição do Ciência em Foco, vamos chamar atenção para outro impacto negativo que o homem gera nas redes tróficas, e, portanto, aos ecossistemas como um todo: a bioacumulação.
A primavera silenciosa: o efeito dos agrotóxicos
A bioacumulação é o processo em que um composto químico vai se acumulando em concentrações cada vez mais elevadas nos organismos de níveis tróficos mais altos em uma teia alimentar. Isso ocorre por meio da alimentação, quando consumidores ingerem organismos que tinham aquela substância em seu organismo, ou ainda por obtenção direta do ambiente. Por exemplo, uma planta de cultivo comercial tem aplicado a ela agrotóxicos e os absorve em suas células e tecidos. Quando um herbívoro se alimenta dessa planta, ele adquire essa substância em altas concentrações (Imagem). Por conseguinte, um animal carnívoro que come esses herbívoros ingere uma quantidade ainda maior de agrotóxicos. Isto é, as presas acumulam em seu corpo essas substâncias e os predadores, ao se alimentarem delas as ingerem. Ok, mas o que pode acontecer?
Vamos mencionar um exemplo não muito distante e icônico na história da percepção ambiental humana. Na década de 1960, nos Estados Unidos, produtos como o DDT (dicloro-difenil-tricloroetano) eram utilizados há anos para combater insetos que se alimentavam de cultivos de interesse alimentar e comercial. Aviões cotidianamente derramavam altas quantidades de tais produtos em plantações – e tudo que havia no entorno. Devido ao resultado rápido na matança de “pragas”, esse tipo de técnica era bastante popular entre produtores de alimentos e incentivada pelo governo. Naquela época, porém, cada vez mais estudos científicos demonstravam os efeitos devastadores que tais produtos tóxicos tinham nos ecossistemas, bem como o número de casos “pontuais” de contaminação de pessoas no entorno de locais de aplicação não parava de crescer.
Apesar disso, a visão de que o DDT e similares eram inofensivos e que seu uso era a melhor ou única alternativa para controle de insetos indesejados permanecia. Foi só a partir de 1962, ano em que a bióloga Rachel Carson publicou o livro Primavera Silenciosa, que os resultados de anos de estudos científicos chegaram ao público. Em sua obra mais famosa, Carson escreveu em linguagem acessível sobre os efeitos tóxicos que produtos químicos que faziam parte do cotidiano das comunidades poderiam causar em qualquer forma de vida que entrasse em contato com eles, inclusive a humana. Alertou, em particular, como o DDT e similares podiam persistir no ecossistema mesmo muito tempo após sua utilização, e revelou que seu efeito de acumulação nas redes tróficas levou à morte de milhares de pássaros em diferentes localidades dos EUA: o massacre acarretou na ausência de seus belos cantos quando a primavera finalmente chegou, resultando em uma estação silenciosa, conforme referido no título do livro.
O alerta de Carson, juntamente com outras iniciativas, trouxe à tona o tema da poluição química e da consciência ambiental para a sociedade e, consequentemente, para a proposição de políticas públicas. De fato, na década seguinte, uma série de leis passaram a controlar a aplicação de tais produtos e novos produtos menos agressivos passaram a ser estudados e utilizados. Dessa forma, hoje a realidade do uso de produtos químicos para combater insetos em plantações, embora longe do ideal, é muito melhor do que naquela época, o que demonstra a capacidade humana de reverter atitudes com efeito ruins a partir de ações para mitigá-los ou eliminá-los.
O controle biológico como alternativa na redução dos agrotóxicos
Embora o uso de agrotóxicos tenha diminuído e esteja mais controlado, tais produtos ainda são presentes e podem ser perigosos para os ecossistemas, incluindo nós. Sem contar o que já sabemos de perigos relacionados a eles, muitas vezes os reais efeitos do uso de determinado produto químico a médio ou longo prazo ainda é desconhecido. Já ouviu essa história? Uma alternativa para redução do uso de agrotóxicos defendida por diversos cientistas (incluindo Carson) e que seria mais sustentável, inclusive de eficácia cientificamente demonstrada em diversos casos, é o controle biológico. Isto é, o uso do que sabemos sobre as relações das redes tróficas a favor da produção de alimento que nos interessa comercialmente. Por exemplo, podemos utilizar, no lugar de um inseticida que combata insetos, uma introdução monitorada de predadores naturais desses insetos nas lavouras.
Apesar de o Brasil ser um campeão no uso de agrotóxicos, existem aqui também, iniciativas de redução de tais substâncias com uso do controle biológico, como já é feito em cerca de metade das lavouras de cana-de-açúcar no estado de São Paulo. No caso, vespas e fungos são utilizados para combater mariposas e cigarrinhas que prejudicam a produção. Exemplos de outros países do mundo incluem estudos demonstrando que formigas utilizadas em diferentes cultivos reduziram o efeito negativo das pragas em níveis iguais ou até superiores aos que produtos químicos sintéticos tiveram, e os benefícios reconhecidos à produção agrícola de morcegos predadores de mariposas. Além disso, outra vantagem destas estratégias é seu custo: bem mais baratas que estratégias de controle químico.
Porém, para o uso do controle biológico, não basta saber que determinada espécie se alimenta de outra e inferir que ter a espécie predadora na sua propriedade será bom. É preciso conhecer as interações ecológicas (incluindo a rede trófica na qual estas espécies se inserem) o melhor possível para evitar efeitos cascatas indesejáveis. Também é preciso conduzir estudos para saber se o nível em que o predador interfere na população das pragas é suficiente para diminuir seus efeitos negativos na lavoura em questão. A eficácia desse método depende do conhecimento da diversidade de insetos da região e suas interações, do tipo de lavoura, do clima, entre outros diversos fatores.
Dessa forma, podemos enxergar o controle biológico como um componente importante na redução do uso de agrotóxicos, mas que sozinho nem sempre vai funcionar. Outras alternativas viáveis e menos poluentes ou prejudiciais ao meio ambiente incluem o uso de produtos químicos mais seletivos (mata apenas o inseto alvo), uso de feromônios (substâncias químicas produzidas pelos próprios organismos), o plantio de diferentes culturas e organismos transgênicos. O importante é que todas as alternativas sejam avaliadas sem vieses culturais ou econômicos não fundamentados, e que o bem-estar ecológico e social sejam levados em consideração mais do que o lucro de poucos. Além disso, é importante a gente sempre se enxergar como parte da natureza, o que de fato somos, e perceber nossa dependência do restante da biodiversidade para nossa qualidade de vida. Afinal, não podemos nos esquecer que não importa o quanto avancemos tecnologicamente, nós continuaremos sendo parte da natureza como qualquer outro ser vivo!
Texto: Caio M.C.A. de Oliveira
Revisão: Vinicius Anelli
Para saber mais
- Carson, R. (1962). Primavera Silenciosa. Tradução Editora Gaia (São Paulo), 1ª Edição. 327 p.
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Maine, J.J. & J.G. Boyles (2015). Bats initiate vital agroecological interactions in corn. Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), 112(40): 12438-12443.
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Offenberg, J. (2015). Ants as tools in sustainable agriculture. Journal of Applied Ecology, 1-9.
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Pivetta, M. & M. de Oliveira (2017). Agricultor de insetos – Entrevista com o Prof. Dr. José Roberto Postali Parra. Revista Pesquisa Fapesp, 261: 32-37.
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Ricklefs, R.E. (2010). A economia da Natureza. Tradução Editora Guanabara Koogan (Rio de Janeiro), 6ª Edição. 639 p.
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