Estudos em fisiologia comparada podem nos trazer muitas revelações (bem como questionamentos) sobre o estabelecimento dos fenótipos em diferentes linhagens de seres vivos.
A mestre em Biologia Comparada, Ana Paula Braga, apresentou aos alunos do programa Adote um Cientista um estudo complexo sobre as estratégias fisiológicas que linhagens de roedores adotaram para sobreviver sob condições extremas, no ambiente subterrâneo.
Ana Paula iniciou sua descontraída palestra caracterizando o ambiente subterrâneo e destacando os benefícios e os desafios de se viver nessas condições. Um ponto que destacou foi a permanência dessas particularidades em todos os ambientes subterrâneos, independente do substrato e da localização no globo – apesar de, obviamente, haver variações, elas são bem menos impactantes do que as variações em superfície. “Os desafios enfrentados em um túnel no Brasil e outro no Alasca são praticamente os mesmos, independentemente das condições da superfície, que são bem diferentes nos dois países!”, ela explicou.
ALUNO: Qual a profundidade do túnel desses animais?
Ana Paula disse que depende muito, e que o mais comum é que isso varie entre 60 centímetros e 1 metro de profundidade. Mesmo assim, há espécies que cavam túneis muito mais profundas, enquanto outras não passam de 20 centímetros abaixo da superfície. Apesar disso, mesmo em galerias extensas, mas com pouca profundidade, o grande desafio é a entrada de ar.
Esse cenário particular permitiu que convergências adaptativas ocorressem em diversas linhagens pouco aparentadas. Isso porque, como as condições são parecidas, as estratégias evolutivas adotadas para sobreviver nesse ambiente também se assemelham.
Corpos compactos (em forma de tambor), redução da cauda, dos olhos, orelhas e pescoço, alterações na musculatura das patas, garras robustas e incisivos proeminentes são algumas características morfológicas bastante comuns em diferentes linhagens de roedores subterrâneos. Estas convergências estão ligadas tanto ao ambiente subterrâneo quanto ao tipo de escavação, que pode ser feita com os membros ou com os incisivos.
ALUNA: Se tem uns que vivem debaixo da terra, quando chove não tem perigo de ocorrer alagamento?
A pesquisadora explicou que em algumas espécies constroem túneis de drenagem. “Não sei se é a intenção, mas eles cavam túneis na parte mais inferior da toca que, devido à sua inclinação, facilitam o escoamento da água”, ela contou.
Adaptações comportamentais e fisiológicas também são observadas, e o foco de Ana Paula foi na taxa metabólica basal.
A taxa metabólica basal consiste na taxa metabólica mínima necessária para manter a homeostase do organismo, ou seja, a energia mínima necessária para que os processos vitais do organismo ocorram.
Determinar essa taxa para um animal depende de condições variadas, e o desenvolvimento (se é um organismo jovem ou adulto), a dieta (se acabou de se alimentar ou está há muito tempo de jejum), a atividade e a temperatura são condições que influenciam nisso. Uma vez padronizadas essas condições, é possível medir a taxa metabólica basal e compará-la em diferentes organismos.
A pesquisadora contou que, em 1947, Max Kleiber propôs que quanto maior fosse o animal, maior seria sua taxa metabólica basal (para mamíferos). Seu estudo foi feito, porém, com animais domesticados e com poucas espécies. Anos de pesquisa depois, sabe-se que, apesar de existir certa tendência nesse sentido, existem muitas exceções.
Mesmo assim, levando esta tendência em consideração, Ana Paula conta que mamíferos fossoriais apresentam uma taxa metabólica basal menor do que a esperada para sua massa corpórea.
“Por que ocorre essa redução para roedores fossoriais, em relação a animais não fossoriais?”, ela provoca.
Duas teorias principais foram propostas. Uma por McNabb, em 1966, é a hipótese do estresse térmico, que relaciona a dissipação de calor em ambiente pouco ventilado, que é o caso dos túneis, como uma pressão seletiva sobre a taxa metabólica basal. Outra hipótese, de Vleck (1979), associa o custo da escavação com a oferta de alimento ao metabolismo – a locomoção em ambiente subterrâneo demanda bastante energia (para escavar), e encontrar alimento (obtenção de mais energia) é relativamente difícil. Segundo Ana Paula, estudos com diversos animais corroboram uma ou outra hipótese, de forma que talvez ambas sejam verdadeiras.
ALUNO: Quando esses animais são mantidos em cativeiro, a taxa metabólica basal vai aumentar, então? Porque ele tem maior disponibilidade de oxigênio…
ANA PAULA: Não necessariamente. O cativeiro implica em uma série de alterações na taxa metabólica. Mas, ao trazê-los, se tenta manter as condições semelhantes ao observado em campo. Uma grande preocupação é a dieta – muitas vezes, a dieta oferecida em condições experimentais é melhor do que a encontrada na natureza, e isso pode influenciar nas medições.
Ela explicou também que, em nossas células, carboidratos, lipídeos e proteínas reagem com oxigênio, liberando energia, água e gás carbônico. Para medir a taxa metabólica basal, pode-se medir a quantidade de oxigênio consumida ou a energia liberada em forma de calor, principalmente.
Ana Paula contou que, em seu estudo, uma vez padronizada a dieta e utilizando apenas indivíduos adultos de uma espécie fossorial brasileira, foram testadas diferentes temperaturas e a atividade dos animais, comparando com a taxa metabólica basal.
O que se observou foi que o ciclo claro-escuro, importante para a taxa metabólica de animais noturnos e diurnos, como galinha ou ratos de superfície, não influencia na taxa metabólica de animais fossoriais, e isso talvez esteja associado a esse ambiente.
“Vocês devem estar cansados de ouvir isso aqui”, ela brincou, “mas ainda não sabemos ao certo muitas coisas”. De fato, a palestra de Ana Paula aproximou ainda mais os alunos do programa à sua rotina de pesquisadora. Ela trouxe os desafios, os conceitos e as abordagens necessárias para se investigar uma pergunta, utilizando um modelo biológico que melhor se adeque a ela. Uma interessante estratégia adotada por ela, durante a palestra, foi trazer os conceitos e os questionamentos antes de mostrar os resultados, levando em consideração os palpites dos alunos.
E mostrou que apesar de muitas descobertas, a dúvida é parte vital da ciência, em uma palestra dinâmica e descontraída, mas com um assunto complexo e interessante.
escrito por Vinicius Anelli
revisado por Marisa Barbieri e Roberto Sanchez
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