Do laboratório para a sala de aula: desafios do ensino de ciências e da divulgação científica no Brasil

A Casa da Ciência do Hemocentro de Ribeirão Preto retomou suas atividades do programa Adote um Cientista com uma palestra ministrada pela Profa. Dra. Joana Andrade, docente da área de Educação do Departamento de Química, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP – USP). Sua formação se inicia com licenciatura em Ciências Naturais e Biológicas e trilha um caminho, na pós-graduação, através de uma área que sempre despertou seu interesse: a Educação. Joana conta que, desde cedo em sua trajetória acadêmica, busca compreender o funcionamento da escola em seus diversos aspectos, incluindo a forma como um aluno aprende e as bases neurológicas desse processo.

A palestra da pesquisadora foi precedida por uma fala inicial da Profa. Dra. Marisa Barbieri, coordenadora da Casa da Ciência, que recebeu os alunos algumas semanas após o encerramento das atividades semanais destacando alguns aspectos da atuação da Casa. Marisa destacou a importância da escola para o aproveitamento dos alunos participantes do programa: “Nós não sobrevivemos sem vocês, que estão na escola. A escola é importantíssima; e nós não substituímos a escola. Nós complementamos”, ela afirmou. Marisa também apontou a proximidade com o pesquisador como uma das principais marcas dos programas. “Cada pesquisador vem até aqui falar dos seus estudos. E cabe a nós estabelecer as relações entre as variadas linhas de pesquisa”, explicou ela.

A relação entre a escola e o “laboratório” foi um dos aspectos mais trabalhados ao longo da palestra da pesquisadora. “Laboratório”, aqui, entre aspas, porque ela logo de início desmistificou a ideia de que ciência é desenvolvida apenas em laboratórios. A verdade é que diversos espaços podem ser utilizados para se conduzir uma investigação científica, seja uma plantação de tomate, o costão rochoso de uma praia ou, até mesmo, uma sala de aula. Joana explicou que o conhecimento desenvolvido precisa ser divulgado e passado para as gerações seguintes e isso é feito, principalmente, nas escolas. Outros meios de se divulgar esse conhecimento são a mídia (internet, televisão, etc.), e espaços informais – como museus, zoológicos, parques e exposições – que chamam a atenção do público em geral pela interatividade e estrutura com a qual trazem a ciência aos visitantes.
Joana destacou, também, que a questão da infraestrutura deve ser levada em conta ao se discutir as escolas. “Apenas 10% das escolas brasileiras possuem laboratórios em condições de uso”, ela contou. E a falta de uma estrutura mínima, segundo a docente, acaba dificultando muito o trabalho do professor de ciências uma vez que a presença de instrumentos práticos para o ensino é essencial.

Quando Joana trouxe à discussão a forma como a educação se organiza no Brasil, com predominância de aulas expositivas teóricas, geralmente com 50 minutos de duração, em detrimentos de aulas práticas, uma aluna levantou uma questão interessante: será que a predominância de aulas teóricas e a ausência de laboratórios e de aulas práticas não é uma consequência do processo seletivo para ingressar em uma universidade?
Joana explicou que isso contribui, mas que não é a única causa. Na verdade, é algo muito complexo, mas ela afirmou acreditar que não é preciso ter uma aula teórica para se trabalhar os conceitos de alguma disciplina. É possível fazer tudo com aulas práticas, utilizando a própria prática para entender a teoria. Nesse sentido, os Estados Unidos, que são um exemplo no quesito do ensino de ciências, têm suas aulas de biologia, química e física todas em laboratórios. O uso de salas ambiente também pode ser uma alternativa interessante, destacou a especialista.
Acima de tudo, Joana apontou que um grande erro é planejar o Ensino Médio tendo como objetivo o ingresso na universidade. “O fim não tem que ser a Universidade. Ele tem que possibilitar o ingresso na Universidade caso o aluno queira”, explicou ela, destacando que a porcentagem de alunos que rumam para o ensino superior ainda é muito baixa no Brasil.

Professora de Ensino Superior na Universidade de São Paulo, Joana, além de exercer a docência, também estuda os processos e os aspectos envolvidos na própria educação. Ela explicou que colocar a sala de aula como objeto de investigação científica é uma tarefa desafiadora. Seu interesse por entender os processos neurológicos por trás da aprendizagem levou Joana a trabalhar com alunos cegos ou com pouca visão em suas pesquisas, analisando-os em um contexto de sala de aula.

Sou docente do Departamento de Química. Mas quando eu fui contratada, a USP não queria um cientista ou um professor: ela queria alguém que atuasse dentro de três frentes – ensino, pesquisa e extensão”, ela também contou. Isso significa que, no exemplo da própria Profa. Dra. Joana Andrade, ela irá ministrar aula de graduação como docente do curso de licenciatura em Química, conduzir suas pesquisas na área de educação (com foco no ensino de ciências) e, além disso, realizar atividades de extensão universitária, aproximando a população daquilo que é desenvolvido dentro dos muros da Universidade de São Paulo.

Para familiarizar ainda mais os alunos do ensino básico com a realidade do ensino superior, Joana propôs uma reflexão: “Vocês já se perguntaram como foi a formação dos professores de vocês?”.
Ela explicou que um curso de graduação – como o de Química ou o de Biologia -, permite que o graduando saia com dois tipos de diploma: o de bacharel e o de licenciado. No caso, o licenciado em Química pode ministrar aulas para o Ensino Fundamental II e Ensino Médio, enquanto o bacharel atua na pesquisa e na indústria em setores nos quais é necessário o conhecimento em química. 
A formação dos professores de ciências do Brasil exige uma carga de 400 horas de estágio durante a graduação (que são divididos em diferentes tipos ao longo do curso, com estágios de observação, de intervenção e prática docente, por exemplo). Além das disciplinas pedagógicas (que buscam preparar o graduando para atuar como professor de ciências), o currículo do licenciado também é composto por disciplinas específicas da área de referência, como Química Orgânica, Cálculo, Química Experimental, etc. Joana destacou que, embora seja observado um movimento na educação básica no sentido de se estabelecer a interdisciplinaridade, ainda é comum na realidade universitária o ensino “em gavetas”. E ela afirmou que essa falta de integração não é vantajosa: “afinal de contas, a ciência não é feita de gavetas”.

Além de atuar na graduação e na pós-graduação como docente, Joana também é diretora do Centro de Ensino Integrado de Química, o CEIQ, que também faz parte do Departamento de Química da FFCLRP. Dentre as atividades desenvolvidas pelo projeto, estão a realização a Olimpíada Regional de Química e o empréstimo de materiais para professores de escolas públicas que desejam fazer experimentos com seus alunos em sala de aula.

Algumas doses de química
Enquanto Joana explicava o funcionamento da Olimpíada Regional de Química (ORQ), uma das principais atividades de extensão desenvolvidas pelo CEIQ, Fernando Trigo, biólogo e integrante da equipe da Casa da Ciência, pediu que ela desse alguns exemplos sobre como os conceitos de química podem ser cobrados nesse tipo de prova. A docente trouxe aos alunos alguns exemplos de provas anteriores da ORQ.
Em uma das provas, tivemos um teste de chama. Nesse caso, são apresentadas aos alunos diversas substâncias que estão diluídas e que devem ser identificadas. Para fazer isso, os alunos utilizam o bico de Bunsen, pingando algumas gota da substância desconhecida na chama. A chama adquire determinada cor de acordo com a substância em questão. O aluno precisa, então, dizer qual tipo de metal está presente ali. Isso é possível porque, ao colocar energia nos átomos (no caso, energia proveniente do fogo), os elétrons saltam de um nível de valência para outro e, ao retornarem para o estado de repouso, liberam um comprimento de onda. E esse comprimento de onda está diretamente relacionado com a cor. Essa relação poderá ser utilizada para determinar qual substância, afinal, é aquela”, contou ela. Uma das características da prova é contextualizar a tarefa do aluno a partir de alguma questão ambiental, social ou do cotidiano. “Por exemplo, os fogos de artifício nada mais são do que sais em combustão e são coloridos porque cada sal irá liberar um comprimento de onda distinto”, a docente explicou.
Em outra prova, os alunos precisavam determinar qual alimento era mais calórico utilizando um calorímetro. “Eles precisam determinar qual dos alimentos esquenta mais a água em um calorímetro – ou seja, qual libera mais energia”, apontou Joana. Além disso, ela trouxe outros exemplos –  uso de indicadores ácido-base para determinar se uma substância desconhecida é ácida, básica ou neutra; manuseio de indicadores de ferro para determinar a quantidade desse metal em uma porção de terra; e processos de separação de misturas (“Os alunos recebiam água suja e, ao fim da prova, precisavam nos apresentar essa água limpa, explicando como isso foi feito”) – e explicou que, basicamente, é apresentado aos alunos um problema e esperado que eles saibam como solucioná-lo utilizando conceitos da química.

O CEIQ também participa da Feira das Profissões, onde é possível esclarecer aos alunos do ensino básico um pouco mais sobre o Ensino Superior, seu ingresso e suas características.  Isso porque é bastante comum que alunos do ensino médio tenham poucas informações acerca das possibilidades do Ensino Superior.
Quanto vocês acham que custa cursar um curso de Química ou de Medicina na USP?”, ela perguntou aos alunos. Diversos valores (todos com mais de três zeros) foram sugeridos. “A verdade é que a USP é uma universidade pública, o que significa que seu ensino é gratuito”, ela esclareceu. O custo dos cursos é, de fato, alto; mas a Universidade é mantida pelo governo do estado de São Paulo a partir do dinheiro arrecadado com impostos – ou seja, o ensino é gratuito, mas quem paga somos nós!

Joana também destacou os desafios do ensino de ciências para todos, considerando as políticas de educação especial na perspectiva inclusiva. Uma das linhas de pesquisa que desenvolve concerne à Educação Especial, oferecendo aulas de química para com necessidades especiais.  Nesse sentido, ela orienta alunos com projetos de iniciação à docência em três escolas de Ribeirão Preto, duas delas consideradas referência na educação especial (no caso, de deficientes visuais e auditivos). “Ensinar a todos quer dizer ensinar para cada um, na sua singularidade”, afirmou ela.
Quando um dos alunos que assistia a palestra contou um pouco sobre sua experiência com uma colega de classe com deficiência física, ele destacou a dedicação e o amor que o professor tem que ter para ensinar. Joana, porém, destacou que não só a dedicação, mas a competência são necessários para que o professor consiga ensinar ciências para alunos com necessidades especiais.

Seguindo essa linha, um dos alunos do programa Adote um Cientista, ao fim da palestra, pediu que a pesquisadora resumisse em uma palavra o que essa palestra representou para ela. Um outro aluno sugeriu que a palavra fosse “igualdade”, destacando o ensino para todos, em suas singularidades. Joana, porém, afirmou que sintetizaria sua primeira participação no Adote com a palavra “perspectiva”. Ela explicou que, após ter aceitado o convite para ministrar uma aula, refletiu muito sobre o que iria contar aos alunos e isso acabou por colocar sua atuação na Universidade sob diferentes perspectivas. “E isso foi ótimo”, ela conclui, encerrando sua primeira palestra na Casa da Ciência com um relato pessoal dos benefícios que sua participação trouxe. Não só para a pesquisadora, como para os alunos também.


 Texto

Autoria: Vinicius Anelli

Revisão: Profa. Dra. Marisa Barbieri, Fernando Trigo e Alice Okabayashi

 

Diagramação

Vinicius Anell