Phineas Gage foi um operário americano que sobreviveu a um acidente de trabalho após uma barra de ferro perfurar completamente seu crânio, destruindo a região do seu lobo frontal esquerdo. O acidente, que ocorreu em 1848, não impressiona apenas pela sobrevivência do operário, mas pelos desdobramentos que a perfuração em parte de seu cérebro causou. Foram observados diversos efeitos comportamentais em Phineas, que foram documentados e estudados por cientistas e médicos da época. Descrito, antes do acidente, como um trabalhador responsável, dedicado e sempre em bons termos com os colegas ao seu redor, ele teria se tornado, após o acidente, grosseiro, desequilibrado e impaciente – uma grande mudança em sua personalidade. Phineas Gage deixou de ser Phineas Gage após ter parte de seu cérebro danificado. E essa é uma constatação que pode dizer muito sobre quem somos.
(Cientistas descobriram como “ligar” e “desligar” a fome de um camundongo utilizando a luz. Como isso seria possível?)
Seria possível controlarmos aspectos do comportamento, como a fome? Inserirmos informações em uma região específica do cérebro, induzindo uma resposta esperada? Hoje sabemos que o comportamento, a percepção, o processamento, as memórias, a personalidade, as sensações, sentimentos e emoções, são atributos associados ao cérebro – um órgão de complexidades estruturais e funcionais impressionantes.
Sabemos que o cérebro é formado pelas células do sistema nervoso, os neurônios (dentre outros componentes celulares, como as células da glia). Estimativas mais recentes indicam que um cérebro humano possui aproximadamente 80 bilhões de neurônios. Um aspecto interessante das células nervosas é sua capacidade de estabelecer ligações com outros neurônios, transmitindo e recebendo informações (a comunicação celular não é um atributo específico dos neurônios). Acredita-se que cada neurônio seja capaz de fazer dez mil ligações celulares. Ou seja, potencialmente, no cérebro de uma única pessoa, talvez haja mais ligações entre neurônios do que estrelas no Universo.
Esse é o grau de complexidade com o qual os neurocientistas trabalham diariamente.
O potencial de repouso e a transmissão de informação no neurônio
Entender o cérebro é claramente uma tarefa desafiadora e pode se iniciar no estudo das células nervosas, individualmente. Assim como os outros tipos celulares de um organismo pluricelular, o neurônio possui algumas características básicas, como a membrana fosfolipídica que separa o meio extra do meio intracelular; o núcleo, onde fica o material genético e parte da maquinaria envolvida em sua expressão e que atua como um centro de comando da célula; uma substância coloidal, de aspecto aquosa, onde ocorrem as reações e onde estão imersas as organelas celulares.
Por outro lado, a forma reflete a função de uma estrutura: ou seja, o neurônio possui também algumas peculiaridades associadas à função que desempenha. Em linhas gerais, um neurônio pode ser dividido em corpo celular, um prolongamento chamado axônio e diversas ramificações do corpo celular, os dendritos. Cada uma destas três regiões da célula estão associadas com uma parte específica da transmissão do impulso nervoso e tanto sua estrutura como seu funcionamento estão diretamente associados com essa função.
E a transmissão do impulso nervoso depende da diferença de cargas mantidas pela membrana plasmática.
O potencial de repouso da membrana plasmática é a diferença de cargas elétricas entre os meios intra e extracelular quando o neurônio se encontra em repouso. Para compreender esse conceito, é preciso entender que moléculas estão sujeitas à difusão, um processo no qual as moléculas tendem a passar de uma região mais concentrada para outra menos concentrada. A membrana plasmática do neurônio possui permeabilidade seletiva a alguns íons e isso faz com que a concentração destes fora e dentro da célula seja diferente. Essa diferença de concentração de íons – que possuem cargas elétricas, chamados de cátions (os com carga positiva) e ânions (os com carga negativa) – gera o potencial de repouso. Dentre os íons, o potássio (K+) é o mais importante na manutenção do potencial de repouso dos neurônios, pois seus canais iônicos ficam sempre abertos, ao contrário dos de Na+ e Cl-. As concentrações de Na+ e K+ são mantidas diferentes dentro e fora da célula através de bombas proteicas transmembrana que, com gasto energético, são as responsáveis por transportar Na+ para fora da célula e K+ para dentro.
Esse é o cenário quando a célula se encontra em repouso, ou seja, não está transmitindo nem recebendo informações.
Mas e quando a transmissão ocorre?
Uma analogia interessante para a transmissão de informações neurais é a de uma fileira de dominós caindo. Se empurramos a primeira peça, todas as outras vão cai. É uma lógica do “tudo-ou-nada”: assim como ocorre na fileira de dominós, onde a queda de uma peça implica na queda de todas as outras, ocorre em um neurônio – se o impulso começa a ser transmitido, não há volta. Portanto, quando um neurônio é estimulado (no caso, quando a primeira peça do dominó é empurrada, digamos, pelo dedo de uma pessoa), isso desencadeará um impulso elétrico que será transmitido ao longo de toda a célula (a queda da primeira peça leva à queda da segunda, que derruba a terceira, e assim por diante).
Alguns canais iônicos só se tornam permeáveis a determinados íons quando a corrente elétrica passa pela membrana. Por isso, a chegada de um estímulo aos dendritos causará a abertura de canais de íon que irão permitir a movimentação de cargas para fora ou para dentro da célula. Isso irá modificar o potencial de repouso da membrana, gerando uma corrente elétrica. A abertura do primeiro canal, então, estimulará a abertura do segundo, e assim por diante, fazendo com que o impulso passe pelo axônio e chegue às suas ramificações. Esse é o chamado potencial de ação, característico da passagem de informação pelo neurônio. Após passar pelo axônio (que é uma espécie de condutor de eletricidade), o impulso chega à fenda sináptica, que é o espaço entre um neurônio e outro.
Todo esse processo ocorre muito rapidamente e é seguido de um período refratário, que dura um milissegundo. Embora pareça um tempo muito curto, é suficiente para que alguns efeitos interessantes sejam observados: por exemplo, quando observamos uma roda de um carro girar muito rapidamente, deixamos de ver seus aros – isso ocorre porque a velocidade do giro dos aros é superior ao número de imagens que a retina pode capturar, ou seja, mais de uma rotação a cada um milissegundo.
A sinapse e a transmissão de informação entre neurônios
Ao chegar à fenda sináptica, será determinado se o impulso elétrico será passado ao próximo neurônio ou não, estimulando ou inibindo o neurônio seguinte. Neurônios de estimulação desencadeiam o potencial de ação de outros neurônios, enquanto neurônios inibitórios inibem esse potencial e mantêm o potencial de repouso da membrana. Para excitar um neurônio, porém, o estímulo tem que atingir um limiar de disparo do potencial de ação: é como se o dedo que derruba o primeiro dominó precisasse tocá-lo com uma força mínima para que essa peça caia. A sinapse ocorre, portanto, entre o axônio de um neurônio e as espinhas dendríticas (ramificações do dendrito) de outro. A fenda sináptica é o espaço ente esses dois neurônios, uma vez que na ligação entre dois neurônios não existe um contato, de fato. Além disso, há milhares de espinhas dendríticas em um único neurônio, ou seja, milhares de estímulos podem chegar a uma mesma célula: é como se 10 mil pessoas estivessem atrás da pessoa dizendo “derrube” ou “não derrube” a primeira peça do dominó, e cabe a essa única pessoa decidir se derrubará ou não.
(Vídeo produzido por alunos da Casa da Ciência, em 2008, sob supervisão do pesquisador Dr. Cleiton Lopes Aguiar)
Pode-se estabelecer, aqui, uma comparação entre neurônios e instrumentos musicais. Instrumentos musicais possuem ritmo e melodia. Neurônios, por sua vez, possuem apenas ritmo. O ritmo do neurônio é bem simples: disparar (potencial de ação) ou não disparar (potencial de repouso). Para cada neurônio, existe um ritmo de atividade. As células da retina, por exemplo, distinguem as cores porque cada cor evoca um ritmo de disparo de um neurônio.
Esse padrão, disparar ou não, lembra algo bastante característico dos sistemas operacionais de computadores: 1 ou 0 – o sistema binário.
O que faz o camundongo sentir fome?
A luz.
No vídeo mostrado acima, por mais incrível que possa parecer, é a luz que desencadeia a “fome” no camundongo. Isto porque, através de uma técnica recente chamada optogenética, a luz é usada como estímulo (é como se a luz fosse o dedo empurrando o primeiro dominó). Ligar ou desligar a luz também “liga” e “desliga” a sensação de fome no camundongo.
Tudo foi possível graças a uma proteína naturalmente expressa em uma alga verde. Essa proteína foi descoberta em 2002 como um canal de membrana sensível à luz e está associada ao afastamento (ou aproximação) dessas algas de uma fonte de luz.
Os pesquisadores notaram que, quando manipulam as células nervosas para que elas expressem em suas membranas esse canal iônico sensível à luz, essa proteína pode controlar de forma bastante específica a transmissão do impulso nervoso em neurônios de mamíferos.
Este procedimento não foi adotado apenas por vaidade dos pesquisadores, nem porque é divertido decidir quando um camundongo deve ou não sentir fome (não entremos no importantíssimo tema da ética, nesse caso). A verdade é que essa é uma das técnicas encontradas pela optogenética de entender como alguns neurônios de regiões específicas do cérebro podem atuar em diversos processos complexos. E qual a importância de se entender isso?
No caso do camundongo, por exemplo, entender como “ligar” e “desligar” a fome pode trazer descobertas imprescindíveis para o tratamento de transtornos alimentares. Cientistas já conseguiram introduzir memórias falsas em outro experimento e até estimular uma resposta ao medo em animais, o que pode revelar ainda mais informações sobre aprendizado, consolidação de memória e entender o medo.
Seria possível fazer isso com seres humanos? Sim, seria possível. A questão que deve ser debatida é: devemos? E se sim, com qual finalidade?
Muito mais a se explorar
Como órgão, o cérebro possui diversas regiões e estruturas que estão mais diretamente associadas a uma função ou processo do que a outro. A tentativa de montar um “mapa do cérebro” se mostra infundada, apesar de algumas generalizações ajudarem para fins didáticos e para uma compreensão geral deste complexo órgão.
O caso de Phineas Gage, por exemplo, um marco dos estudos clínicos na neurociência, revelou muito sobre as tarefas desempenhadas pelo lobo frontal do cérebro humano. De fato, muito da nossa conduta está envolvido com essa região, mas não se limita a ela.
A verdade é que a forma como percebemos o mundo e como agimos nele está em nosso cérebro. Memórias, sonhos, pensamentos, sensações e emoções, são exemplos de “fenômenos” associados a esse órgão e que estão longe de ser completamente compreendidos e desvendados.
Há apenas algumas décadas o homem chegou à Lua. Começa a se preparar agora para viajar até Marte e a outros planetas. Mesmo assim, sabemos da dimensão do Universo, embora tenhamos dificuldades em expandir nossas fronteiras.
Com o cérebro, é a mesma coisa. Sabemos da existência de muitos mecanismos e processos, mas estamos longe de desvendá-los. Assim como os exploradores do espaço, temos que começar pelo que nos é mais familiar e próximo, entendendo os mecanismos intracelulares dos neurônios, para podermos, a partir daí, desvendar temas muito mais complexos – como aquela memória de infância que ainda desperta nostalgia, ou o aperto no coração quando vemos a fotografia de um ente querido que já se foi, ou mesmo a criatividade artística quando compomos uma melodia.
Ou quando terminamos de ler um texto e sentimos curiosidade em saber ainda mais sobre aquele assunto.
(O texto foi baseado em duas palestras ministradas pelo neurocientista Dr. Cleiton Lopes Aguiar, no programa Adote um Cientista, em 25 de setembro de 2014 e em 17 de março de 2016).
escrito por Vinicius Anelli
revisão por Marisa Barbieri
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