Trajando um terno impecavelmente arrumado, o detetive entra no clube, que agora também pode ser chamado de cena do crime. Olhando à sua volta, percebe o corpo boiando na piscina. Ao lado dessa, manchas de sangue da vítima espalhadas em um padrão reconhecível, além de material biológico com possível amostra de DNA do criminoso. Diante de tal situação, favorável ao seu trabalho, o detetive diz: “Com tantas evidências científicas assim, essa investigação será tranquila…” (coloca seus óculos escuros e olha para o nada, contemplativo) “…como uma tarde no clube” (Música tema toca).
Mas será mesmo?
Para aqueles que já assistiram, a cena genérica acima ilustra o que seria um começo de episódio da série de investigação criminal CSI Miami, mais uma dentre diversas de conteúdo similar que mostram o trabalho de peritos e detetives solucionando crimes baseados em evidências forenses. Mas será mesmo que na vida real é possível compararmos evidências de um crime (projéteis, impressões digitais, DNA, manchas de sangue, fios de cabelos) com bancos de dados em computadores, individualizando uma amostra e atribuindo-a para um indivíduo específico, um match frequentemente apresentado na televisão? (Figura 1).
Figura 1: Cena de um episódio do seriado “CSI” (em inglês, sigla para Crime Scene Investigation) da rede americana de televisão CBS. Neste tipo de programa, é comum que amostras sejam atribuídas com exatidão a um indivíduo ou fonte, apesar da complexidade envolvida nesses tipos de análise. Na imagem, exemplo de impressão digital (modificado de http://segredosdomundo.r7.com/).
O “efeito CSI”
Atualmente, foi diagnosticado que existe uma expectativa, durante julgamentos reais, de que em todos os casos criminais exista apresentação de evidências forenses que potencialmente solucionariam o crime e facilitariam a decisão do júri. Tal expectativa tem sido chamado por especialistas de “Efeito CSI”. O nome deriva da popular série de televisão CSI: Crime Scene Investigation (produzida pela rede de televisão CBS; no Brasil, também conhecida como “C.S.I.: Investigação Criminal”), que acompanha um grupo de peritos resolvendo crimes a partir de técnicas e utilizando ferramentas das ciências forenses. Tal padrão cria no espectador a expectativa de que uma amostra de sangue com DNA, ou um fio de cabelo na cena do crime, possam resolver irrevogavelmente uma cena criminosa obscura. O problema dessa excessiva confiança em evidências ditas como “científicas” surge visto que a maior parte dos julgamentos reais não serão parecidos com aqueles casos que assistimos em seriados, isto é, não existirão inúmeras evidências suportando cada detalhe da narrativa (hipótese) de defesa ou acusação, permitindo inclusive uma reconstrução dos passos do criminoso e da vítima. Mais do que isso, mesmo quando existem, tais evidências nem sempre proporcionam resultados conclusivos e inquestionáveis após análises forenses cuidadosas.
Isso significa que algum suspeito poderia ser condenado injustamente caso houvesse alguma evidência (mesmo que questionável) contra ele, ou ainda que um criminoso poderia ser solto devido à ausência de “provas científicas”. Por isso, um alerta sobre o “Efeito CSI” foi aceso, e atenção especial tem sido dada ao tema, uma vez que não só ambos os tipos de casos citados já ocorreram, bem como o número de descobertas desse tipo de situação se torna cada vez maior! Em outras palavras, não apenas os juris (formados por pessoas comuns, como você), mas advogados de defesa, promotores e até juízes também podem ser influenciados pelo conteúdo e “realidade” dessas séries.
A “ciência forense” e suas “comprovações”
A “ciência forense”, na verdade, engloba diversas disciplinas. Assim, devemos falar em ciências forenses no plural, sendo que cada especialidade tem sua própria prática, tecnologia, técnica, metodologia e, inerente ao método científico, grau de confiabilidade. Por exemplo, existem ciências forenses baseadas em evidências de DNA, toxicológicas, de impressões digitais, da escrita, de marcas de mordida, de manchas de sangue, de fios de cabelo, dentre outras muitas possibilidades, as quais envolvem diferentes experimentos de laboratórios, interpretação de especialistas e observações de padrões (Figura 2). Ou seja, a confiabilidade de cada uma dessas análises dependerá das limitações e erros particulares a cada uma, bem como da atual organização do conhecimento científico envolvido com o uso de cada técnica – afinal, a ciência está em constante construção, e o conhecimento de algumas áreas pode estar mais “consolidado” perante a comunidade científica do que outras, o que, muitas vezes, é desconhecido pelas pessoas envolvidas no julgamento.
Até mesmo as análises forenses que apresentam uma metodologia mais rigorosa e corroborada, já demonstrada replicável e que passou em diversos testes científicos acumulando evidências a favor de sua confiabilidade, não seriam propriamente capazes de “comprovar cientificamente” uma hipótese. Termos como “comprovar cientificamente” ou ainda “grau razoável de certeza científica”, frequentemente utilizados por advogados e promotores para convencer o júri, não fazem sentido do ponto de vista da ciência. No método científico, uma hipótese pode ser falseada (ou seja, o conjunto de evidências reunido pode demonstrar que tal conclusão esperada, na verdade, é falsa), mas não pode ser comprovada definitivamente – em outras palavras, o método científico consiste na constante e sistemática tentativa de se falsear uma hipótese. É o acúmulo de diversos testes realizados que não conseguem demonstrar a invalidade de uma explicação que gera suporte para que essa seja considerada verdadeira. Devido a uma compreensão equivocada da ciência e do “Efeito CSI”, é comum uma confiança exacerbada de que uma prova denominada como “científica” deva ser considerada definitiva e inquestionável.
Figura 2: Existem diversas variáveis que interferem na confiabilidade de uma evidência, desde qualidade das amostras até subjetividade da interpretação feita. Esse é outro problema do “Efeito CSI”: a percepção de que a ciência sempre gera provas inquestionáveis e totalmente confiáveis durante uma investigação criminal. Vale ressaltar que muitas das análises apresentadas nesses programas televisivos sequer encontram requerimentos fundamentais para serem consideradas como uma ciência rigorosa e de pouca subjetividade segundo a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. A) Demonstração de uma cena típica do seriado CSI: um especialista conduz exame de balística, analisando em um microscópio padrões deixados pelas ranhuras do cano da arma no projétil; B) Outros exemplos de análises forenses presentes nos seriados: marcas de mordidas, solas de sapato e pneus, impressões digitais. Imagens modificadas de http://www.leedsmicro.com, http://www.abc.net.au, http://weaponsman.com, http://www.nytimes.com e https://www.wired.com.
O exemplo dos padrões de manchas de sangue
Um tipo de análise bastante comum apresentado em seriados televisivos de maneira sensacionalista é a avaliação de machas de sangue formadas durante um crime violento. A série de televisão “Dexter” (também produzida pela emissora americana CBS) tem um protagonista que é, justamente, um perito em avaliar esses padrões, isto é, um perito em análise de manchas de sangue. Caso você não esteja familiarizado com esse tipo de análise, não há problemas, basta entender que especialistas podem ajudar a entender a posição e localização de uma vítima na hora do crime, o ângulo e a força com que ela foi atingida pelo golpe ou objeto que a matou, bem como a arma utilizada pelo assassino de acordo com padrões formados pelas manchas de sangue (Figura 3). Idealmente, é claro.
A interpretação dos padrões deixados durante a execução do crime é baseada no tamanho, forma, localização e distribuição das manchas de sangue encontradas, e, ao contrário do que programas de televisão podem sugerir, é uma tarefa complexa e de difícil resolução. Outra ressalva feita por especialistas é que não existem estudos científicos suficientes para determinar com maior confiabilidade como a quantidade de sangue derramado, tipo de vaso sanguíneo atingido ou tecido das roupas utilizadas pela vítima podem influenciar os padrões deixados. Então, por exemplo, se uma vítima utilizava uma camiseta esportiva projetada para dissipar suor, as manchas de sangue que ficariam em suas roupas teriam um padrão diferente daqueles que se formariam em uma camiseta de algodão. Ainda, a quantidade de lavagem que as roupas passaram e os produtos utilizados podem afetar a conformação das fibras da camiseta, o que afetaria também os padrões de sangue que ali seriam encontrados.
E não acaba por aí, a subjetividade dessas interpretações pode ser ainda maior. Os especialistas em manchas de sangue não observam apenas as manchas deixadas, eles visitam a cena do crime e ficam expostos a toda bagunça dela, isto é, veem o corpo e quem é a vítima, o local, bem como escutam depoimentos de policiais e testemunhas, o que pode enviesar a análise mesmo que de forma inconsciente. Isso foi demonstrado em um estudo em que se simularam situações investigativas reais: neste trabalho, os autores sugeriram que análises de sangue deveriam ser avaliadas por dois peritos, um com acesso à cena do crime e suas informações e outro que receberia apenas as fotos ou objetos com manchas de sangue, buscando congruência das interpretações e avaliando um possível viés.
Em resumo, o que esses estudos mostram é que as interpretações de padrões de sangue se baseiam mais na experiência do perito do que em conhecimentos específicos subjacentes à técnica. Apesar destes estudos sugerirem alta subjetividade no trabalho destes peritos, isso não significa que devamos abandonar o uso ou desconfiar completamente deste tipo de análise, uma vez que esta é uma importante ferramenta forense, que já tem auxiliado por anos investigações criminais. É importante reconhecer, porém, que tal abordagem pode estar sujeita à subjetividade e que deve ser constantemente estudada para que as interpretações se tornem mais rigorosas, bem como deve ser considerado como uma evidência para somar outras e não ser em si, uma “prova definitiva”.
Figura 3: Trabalho de um especialista em analisar padrões em manchas de sangue. Cada tipo de padrão recebe um nome, porém os próprios nomes utilizados como “borrifo”, “corte” ou “transferência” podem ser considerados enviesados, visto que já sugerem como a mancha teria sido formada antes mesmo de ser feita uma avaliação e interpretação. Imagens modificadas de https://br.pinterest.com e https://i.pinimg.com.
O “incontestável” DNA
Na década de 1980 ficou claro que o uso de técnicas de biologia molecular para análise de proteínas e sequências nucleotídicas (DNA) se tornaria uma excelente forma de se avaliar evidências forenses. Hoje, a análise de DNA pode ser considerada a mais consistente ferramenta forense, visto que, nesse caso, os “matches” do CSI são algo muito mais próximos da realidade. Inclusive, diversos dos erros cometidos em condenações devido a evidências forenses duvidosas foram desmascaradas posteriormente com o uso de ferramentas moleculares. Isso ocorre porque, em uma comparação de sequências nucleotídicas ideal, a probabilidade de uma combinação amostra-indivíduo errada é extremamente baixa: desde que a qualidade da amostra, as condições e os procedimentos de sua coleta bem como a condução das análises sejam controladas e ideais.
Ao contrário do nosso senso comum, ou do que o “Efeito CSI” gera, é frequente que provas de DNA adquiridas em uma investigação criminal não sejam aceitas em um tribunal. Isso ocorre porque existem fatores que podem fazer com que o DNA não seja incontestável. Por exemplo, a chance de ocorrerem contaminações das amostras ou haver pouco DNA disponível para coleta na cena do crime são altas, sem contar que a qualidade desse material biológico pode ainda ser ruim, visto que o DNA se degrada muito facilmente. Além disso, é comum se encontrar amostras de DNA contendo material genético de diferentes fontes, como, por exemplo, do autor e vítima do crime, ou pessoas que estiverem na cena antes ou depois dele ocorrer. Nesses casos, a combinação de material genético atrapalha a condução das análises e muitas vezes não permite um resultado confiável.
A lição aqui é que a obtenção de resultados confiáveis com DNA não é tão trivial e óbvia como acreditamos ser: o processo envolve chances de contaminação das amostras tanto em campo como em laboratório, degradação da mesma, bem como questões estatísticas referentes às probabilidades populacionais de confundir uma combinação (assunto para outro texto). Portanto, o uso da evidencia de DNA também deve ser entendido como complementar à investigação, sendo utilizado para corroborar hipóteses que de preferência também sejam sustentadas por outras evidências.
Afinal, quão confiáveis são as evidências forenses?
Em conclusão, nós precisamos ser conscientes de que quando se trata de programas de televisão, estamos diante de um show feito para nos entreter, cujos compromissos com a realidade e com a ciência são reduzidos. No caso das ciências forenses, em atrações no estilo de ‘CSI’, a ciência é apresentada como um processo mais simples, objetivo e rápido, nas quais um profissional é especialista em todos os tipos de análise, e essas, por sua vez, trazem resultados irrefutáveis e, quando convém à trama, confiáveis. Sendo assim, as ciências forenses da vida real apresentarão níveis distintos de confiabilidade e aceitação em tribunais, e devem ser consideradas quando em congruência entre elas, bem como com a hipótese investigativa como um todo. Ou seja, o uso dos conhecimentos científicos em processos criminais tem tido ótimos resultados e aprimorou as investigações ao longo dos anos, auxiliando que criminosos e vítimas encontrassem justiça. Porém, evidências forenses não devem ser supervalorizadas como na televisão, bem como sua ausência em casos reais não desqualificam o processo de investigação como um todo. Vale a pena lembrar disso caso um dia você faça parte de um júri, para que você cumpra com consciência seu papel, sem correr o perigo de se tornar mais uma vítima do “Efeito CSI”.
Texto: Caio M.C.A. de Oliveira
Revisão: Vinicius Anelli
Para saber mais
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Gupta, S. 2017. Written in blood. Nature, volume 549.
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National Academy of Sciences. Strengthening Forensic Science in the United States: A Path Forward (National Academies Press, 2009).
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Oliver, J. 2017. Forensic Science. Last Week Tonight with John Oliver. Publicado em 1 de out de 2017 e disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ScmJvmzDcG0.
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