Na década de 60, o pesquisador Sérgio Henrique Ferreira, professor da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, e sua equipe isolaram da toxina do veneno da jararaca uma substância, o FPB. Surge, a partir desse estudo, um dos remédios mais vendidos hoje em dia para controle de pacientes com hipertensão, o Captopril.
A relação promissora entre pesquisas com toxinas encontradas no veneno de serpentes e o tratamento de doenças graves foi um dos aspectos mais marcantes do encontro do Adote um Cientista do dia 30 de outubro de 2014.
A doutoranda Sandra Mara Burin, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP de Ribeirão Preto, trouxe aos alunos do programa mais detalhes sobre seu trabalho, que busca isolar uma toxina do veneno de serpentes para o tratamento da Leucemia Mieloide Crônica (LMC), um tipo de leucemia que representa 15% das leucemias que acometem adultos. Sandra faz parte do grupo de pesquisa da professora Dra. Fabiola Attiê de Castro, que trabalha com toxinas do veneno de outros animais, como escorpião, sapo e vespa. Em sua fala, a especialista resgatou conceitos trabalhados no encontro sobre apoptose (reveja aqui) e iniciou questionando os alunos sobre a doença.
Sandra: Vocês sabem o que é leucemia? Alunos: Leucemia é um tipo de câncer. Sandra: Correto. A leucemia é uma doença maligna, um tipo de câncer que acomete o sangue, afetando a atividade dos glóbulos brancos. |
Focando na estrutura do sangue, a especialista mostrou a composição celular desse tecido, com enfoque aos glóbulos brancos, principais afetados pela leucemia.
Sandra: Quem são os glóbulos brancos? Aluno: São as células do sistema imune. Sandra: Exatamente! São os nossos soldadinhos, células guerreiras que combatem patógenos no nosso organismo. |
Produzidos na medula óssea, assim como os outros componentes sanguíneos, os glóbulos brancos (também chamados de leucócitos) ocorrem em cinco subtipos em nosso sangue, diferindo tanto em função quanto em aparência. Classificados em duas linhagens, mieloide e linfoide, são facilmente distinguíveis em um hemograma, exame que avalia os componentes do sangue.
Leucemia Mieloide Crônica
Para esclarecer melhor o que é a doença na qual seu estudo é focado, a pesquisadora explicou o que significa cada parte de seu nome – Leucemia Mieloide Crônica (LMC): Leucemia é um tipo de câncer que afeta os glóbulos brancos; o termo Mieloidese refere às células afetadas pela doença, que pertencem à linhagem mieloide; enquanto Crônica caracteriza uma doença cujo curso de evolução é lento.
Mais comumente diagnosticada em adultos (entre 45 e 55 anos de idade), é uma doença geralmente associada à exposição a radiações, em especial raios-x. “Isso não significa que, ao fazer um exame de raios-x, você desenvolverá a doença”, explicou Sandra, “mas sim que a exposição sem proteção à radiação pode levar ao desenvolvimento do câncer”. No início, o paciente não costuma apresentar sintomas, o que dificulta o diagnostico precoce. Porém, quando em estágio mais avançado, alguns sintomas associados a outras doenças, tais como febre alta constante, sudorese noturna com calafrios e perda de peso, podem surgir.
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A LMC acontece devido a uma translocação entre as extremidades dos cromossomos 9 e 22. Translocação cromossomal é um evento no qual parte de um cromossomo é inserido em outro não homólogo, recebendo também um pedaço desse outro cromossomo. Translocações de cromossomos podem gerar doenças graves. Nesse caso, a presença do Cromossomo Filadélfia, que é o nome dado ao cromossomo 22 modificado, em homenagem aos pesquisadores da Filadélfia e da Transilvânia (que o descreveram pela primeira vez), está diretamente associada à ocorrência da Leucemia Mieloide Crônica.
O Cromossomo Filadélfia é responsável pela produção de uma proteína, aBcr-Abl, responsável por aumentar a taxa de mitoses – aumentando a quantidade de neutrófilos no sangue – e, paralelamente, impedir a morte por apoptose dessas células.
O tratamento da doença é feito, geralmente, por quimioterapia, ministrando um medicamento que impede a atuação da Bcr-Abl. A cura pode ser obtida através do transplante de medula óssea, porém esse é um procedimento bastante arriscado devido à baixa imunossupressão do paciente, além da dificuldade em se encontrar uma medula compatível – o que torna essa opção bastante rara. “Como melhorar, então, o tratamento da doença?”, questionou Sandra. Segundo a pesquisadora, toxinas obtidas nos venenos de serpentes são boas indutoras de apoptose, o que colocam essas substâncias como alternativas promissoras ao tratamento da leucemia.
A cura está no veneno?
Animais venenosos e animais peçonhentos produzem venenos, ou seja, substâncias que podem causar danos a outros organismos, mas se diferenciam em um importante aspecto: animais peçonhentos possuem aparelho de inoculação e podem, assim, introduzir esse veneno em outros animais. Dentre os animais peçonhentos, encontramos aranhas, escorpiões, vespas e serpentes – das quais podemos destacar algumas espécies brasileiras, tais como a cobra-coral verdadeira (a falsa-coral não é peçonhenta), jararacas, surucucu e cascavel. As peçonhas, que representam uma importante estratégia de defesa e predação para esses animais, são, muitas vezes, bastante nocivas ao ser humano. Isso explica o grande número de pesquisas ao longo do tempo buscando entender não somente como tratar o envenenamento, mas também seus efeitos – por exemplo, anticoagulação e indução de apoptose.
Induzir a apoptose é o que motiva os pesquisadores a isolar as toxinas do veneno para utilizá-las no tratamento de doenças como o câncer. A pesquisadora contou que, em seu estudo, utiliza L-aminoácido oxidases (LAAOs), um grupo de proteínas que representa de 1 a 9% das proteínas encontradas nas peçonhas. Essas moléculas são importantes indutoras de apoptose, e sua utilização no tratamento da leucemia serviria para matar as células doentes – que se proliferam constantemente e impedem a morte celular de acontecer.
Aluno: Nessa utilização da toxina para combater a leucemia, pode ter efeito colateral? Sandra: Sim, isso pode acontecer. Por isso nós fazemos testes com células saudáveis, para verificar a toxicidade dessas substâncias . |
Aluno: As células do sangue utilizadas para o teste são do sangue periférico ou da medula óssea? Sandra: Periférico, porque a obtenção dessas células é feita a partir de um procedimento menos invasivo do que obtê-las da medula óssea. |
Da natureza às prateleiras
O biólogo Fernando Rossi Trigo, integrante da equipe da Casa da Ciência, fez uma pergunta aos alunos: qual a quantidade de veneno inoculado pela serpente ao morder sua presa? Sandra ressaltou que a diferença entre o veneno e o remédio está na concentração da toxina ministrada, um aspecto de grande relevância aos estudos que foram apresentados por ela. Fernando incitou os alunos a pensarem, também, se é difícil montar um serpentário e quantas serpentes seriam necessárias para se extrair um grama de veneno. Sandra citou a existência de alguns serpentários importantes no Brasil, destacando o Instituto Butantan, na cidade de São Paulo. Além disso, a pesquisadora afirmou que a legislação brasileira é uma das mais rigorosas do mundo no que tange a conservação e a proteção de espécies animais, embora a fiscalização ainda seja ineficaz em evitar a biopirataria.
Outro aspecto ressaltado foi a importância de se respeitar esses animais, devendo-se fazer uso consciente da natureza em pesquisas como essa. A pesquisadora contou, por exemplo, que durante seu mestrado, a serpente que estudava foi considerada como sendo uma espécie em risco de extinção, o que trouxe barreiras para que seu trabalho continuasse. Ela frisou a importância de grupos de pesquisa que buscam sintetizar proteínas como as LAAOs, de forma a possibilitar sua produção em larga escala sem comprometer ou prejudicar a biodiversidade.
Para exemplificar outras pesquisas com toxinas no Brasil, Sandra exibiu duas reportagens televisivas sobre estudos que associam o uso do veneno de serpentes, no caso cascavel e surucucu, com o tratamento de doenças – respectivamente, câncer de pele e câncer no intestino.
Ao fim da apresentação, a professora Daniela Ishii Carvalho perguntou por que demora tanto tempo para que tratamentos como esse se tornem realidade. Sandra explicou que o processo de desenvolvimento do tratamento, como um todo, é bastante demorado. São necessários ensaios com células isoladas e com animais para, em seguida, se iniciarem os ensaios clínicos. E é essa fase que leva mais tempo. Ensaios clínicos envolvem comitês de ética e toda a burocracia do sistema industrial farmacêutico. “O que fazemos aqui é só a base. A indústria farmacêutica pega a toxina e desenvolve o remédio a partir desses estudos”.
Essa relação entre pesquisa de base, indústria farmacêutica e biodiversidade foi o tema da discussão que encerrou o encontro, que acabou apontando qual o papel de cada um dos envolvidos nesse tipo de processo. O papel dos pesquisadores, a quem cabe associar aquilo que encontramos na natureza com o desenvolvimento tecnológico e melhorias da nossa qualidade de vida, ficou bem claro ao fim do encontro. Mais claro ainda ficou o papel da biodiversidade, cuja riqueza oferece um leque amplo de possibilidades e descobertas. Descobertas essas que podem acabar salvando incontáveis vidas…
Espaço dos alunos
A partir da análise das filipetas do encontro, a equipe da Casa da Ciência produziu este infográfico destacando as principais dúvidas manifestadas pelos alunos e os principais conceitos aprendidos no encontro. A finalidade deste instrumento é a avaliação dos momentos de aprendizagem do aluno e valorização da sua dúvida.
Texto
Autoria: Vinicius Anelli
Revisão: Profa. Dra. Marisa Ramos Barbieri e Gisele Oliveira
Espaço dos alunos
Análise de filipetas: Luciana Silva
Infográfico: Gisele Oliveira
Diagramação
Vinicius Anelli