Rebuscando o português: por uma neuroplasticidade diferente

Momentos bons passam rápido e as suas memórias ficam pelo resto da vida. Assim foi a minha experiência no programa Pequeno Cientista da Casa da Ciência do Hemocentro na USP junto a estudantes da Escola Estadual Jardim Paiva II. Pequenos humildes, mas nem imaginam o quanto ensinam para nós orientadores participantes do programa. No primeiro encontro (18), percebi uma turma tranquila, mas inibida e sem afinidades – a exceção de alguns discentes –, o que foi explicado depois, por participarem a classes diferentes na escola. Os alunos mostraram atenção, interesse e foram bem receptivos. A introspecção foi gradualmente sendo deixada de lado, no decorrer da aula. Todos conseguiram participar e contribuir com a aula ao seu modo, a partir da sua bagagem cultural. Percebi potencial em alguns dos presentes por suas relevantes indagações, durante as atividades desenvolvidas entre diálogos, dinâmicas práticas e vídeos apresentados. Consegui passar a mensagem que eu queria neste primeiro contato: a conscientização da importância da leitura e da escrita, bem como a sua incorporação no cotidiano de cada aluno, incluindo os seus benefícios para o desenvolvimento da cognição e funções psicológicas superioras. Pude notar momentos de reflexão entre os discentes acerca da proposta temática, correlacionando-os às suas próprias experiências. Um dos discentes admitiu ser gago, ao se deparar com o processo de leitura em voz alta em classe, cuja solução seria, a princípio a leitura em dupla; por outro lado, a extroversão de outros estudantes estimulou significativamente o engajamento dos presentes. Porém, grande parcela do grupo confessou não ter interesse ou comprometimento com a leitura e a escrita. A maioria não gostava de ler (não era estimulada) tampouco escrever. E muitos nunca tinham utilizado o dicionário. Ao pedir que tentassem escrever livremente, constatei dificuldades de meus alunos principalmente na expressão e produção de textos escritos, o que revelou uma certa defasagem em sua trajetória educacional, o que já é uma infeliz realidade brasileira.
Para o segundo encontro (19), pedi que trouxessem textos que conseguissem captar a atenção de cada um. Apresentei palavras de baixo grau de familiaridade na língua portuguesa e realizei exercícios visando a assimilação dos seus conceitos, para que pudessem ser, então, inseridas no repertório linguístico dos estudantes, ao fortalecer essas conexões sinápticas pela aprendizagem. O grupo conseguiu inferir algumas das palavras e suas representações semânticas, com leitura pública dos textos e aplausos dos presentes.

Sinto-me inusitado (estranho)
Vou sair a ruar (sem destino)
Vou buscar no caminhar
Algo que me deixe pândego (feliz)
Vou perscrutar (revirar) minha vida
Algo que me deixe pachorrento (calmo)
Estou me sentindo tênul (frágil), taciturno (calado), frugal (simples), supérfluo (desnecessário)
(Texto trabalhado em sala, com suas palavras incomuns e respectivos sinônimos redundantes, com leitura pública em sala)

Foi possível confirmar os efeitos causadores de ruído no processamento mental dos participantes perante as palavras de baixo grau de familiaridade apresentadas. As principais intervenções foram feitas durante o exercício de assimilação dos vocábulos, no sentido de estimular a sua aquisição. Um discente em especial era dotado de potencial, quem conseguiu responder a algumas perguntas e levantou outros questionamentos relevantes, cujas observações impulsionaram outras discussões.

O planejamento para o terceiro encontro (20) incluía uma atividade de visitação à biblioteca disponível na própria escola e totalmente acessível, para a mudança do ambiente de ensinagem e aprendizagem, o que foi bem aproveitado, melhorando principalmente a comunicação e exposição de ideias. Os estudantes selecionaram títulos de seu interesse e participaram de dinâmicas em grupo, compostas pela narração de sinopses dos materiais selecionados, identificação e retirada de palavras que não faziam parte do seu vocabulário, cujos significados foram pesquisados nos dicionários fornecidos.



Outra atividade proposta em sala que galhofou os discentes foi a da entrevista pública dos leitores por uma repórter de muita aptidão. E, tu aí, sabes o que significa “galhofou”?

A conexão certa seria entreteve, divertiu, etc.

A empolgação resultou em recitais dos materiais lidos, a exemplo da gravação exclusiva abaixo.

As responsáveis pela biblioteca são as professoras Adriana e Luciana com quem já contamos para o fomento de atividades fascinantes, como as ações do recém-criado clube do “Rebuscando o Português”, formado por integrantes do Paiva para incentivar a leitura e escrita entre os discentes; e o concurso de soletração, previsto para o mês de outubro, dando continuidade na execução do nosso projeto.
O quarto encontro (21) foi totalmente diferente, ao ser conduzido nas dependências da Casa da Ciência no Hemocentro de Ribeirão Preto da USP, proporcionado aos participantes como uma atividade extra. No anfiteatro do centro, todos se reuniram para a oficina de teatro da professora Gabriela que terá suas ações continuadas após o mural da Casa em novembro. A experiência foi certamente valiosa para incrementar a expressão artística dos estudantes, imaginação e criatividade.

Após a oficina, devido ao fato de que muitos estudantes estavam participando de outros grupos simultaneamente, resolvi não avançar no conteúdo, considerando também que os recursos didáticos se tornaram mais escassos, com o ambiente da aula ao ar livre, o que não prejudicou o interesse dos que ali estavam. Percebi alguns rostinhos novos que não tinham acompanhado as atividades anteriores no Paiva. A tarde foi iniciada com exercícios de aquecimento para o cérebro, para posterior dinâmica de fixação das palavras incomuns até então apreendidas, com o intuito de estimular a sua utilização no dia-a-dia dos discentes, dentro e fora do ambiente formal da escola. O recurso de música também foi aproveitado para aprimorar a aprendizagem. Ao final da aula, alguns me procuraram para algumas orientações durante seus estudos:
– Ler pelo menos 20 minutos por dia já traz diversos benefícios para a expressividade oral e escrita, organização do pensamento e raciocínio lógico;

– A tecnologia não exclui os livros, cuja leitura e escrita manual devem ser praticadas enquanto excelente alimento ao nosso sistema nervoso e formação de memórias;
– O estudo deve acompanhar anotações no papel para facilitar a criação e reforço de conexões mentais.

O quinto e último encontro da semana (22) seria realizado novamente na sala de aula do Paiva, mas os alunos foram acomodados na biblioteca, a pedido da Adriana.

Cada um discente retirou uma frase surpresa que poderia servir de inspiração na produção de um texto de formato livre (poesia, crônica, letra musical, narração, dissertação, etc.), e alguns também escreveram sobre a semana que passamos juntos. Os discentes deveriam utilizar o máximo de palavras incomuns vistas anteriormente em seus textos que foram apresentados oralmente em sala para toda o grupo. Também poderia utilizar outras palavras rebuscadas encontradas nos dicionários e outros instrumentos de pesquisa. Muitos se preocuparam em relação a aspectos estruturais – principalmente o texto poético –, o que logo se dissipou ao saberem que a escrita seria livre de formalidades.

MENINA – JULIA SIQUEIRA
Se olhe no espelho menina, tu és a idiossincrasia da beleza. Esse eflúvio de juventude, com esse seu jeito chistoso, seu jeito pachorrento, tênul e taciturno de ser é o que tem de melhor. O colorário de sua baixa estima está aí, deixe de ser tão belicoso contigo, tu és como tem que ser. Esta obulia está tomando conta de seus pensamentos impedindo que eles fiquem absortos. Tu tens o dom de fazer todos se afeiçoarem, sei também que queria ter um jeito afável de ser, mas não consegues, na verdade você tem o jeito lhano no entanto não tem o reconhecimento que queres. Está sempre frustrada, fazes o que queres, tenta ser afim das outras pessoas suas emoções estão injuriadas, queres tirar essa ânsia do peito. No fundo quer ser apenas normal nessa sociedade em que a beleza é o que mais importa.

O BOM SENSO – TAINARA SOUZA
“Tenho o bom senso de escutar a opinião das pessoas, mas também mantenha a certeza de que está vivendo de acordo com suas escolhas e não com as delas” (frase retirada em sala).
Não seja ímpio, tenha conhecimento; tudo que você pensa em respeito de qualquer coisa. Primeiro passe a saber realmente o que está acontecendo para não entrar em uma discussão formal sem ter argumentos ou exemplos. Mantenha-se em “forma”, se valorize. Você é aquilo que quer, seja lhano, seja compreensivo, mas se valorize. Tu és a sumidade, você precisa acreditar em si mesma; não se torne alguém com o senso incomum, uma pessoa sem opinião, uma pessoa fria. A sociedade não sabe lidar com a diversidade de opiniões que existe, infelizmente! Busque informações, leia, pesquise como já dito passe a saber tudo. Ler é essencial para estimular o nosso Sistema Nervoso Central. Seja culto, tenha o bom senso!

AUTOR: TAUAN SOUZA
O dia em que morri não senti dor alguma
Todos aqueles que ao redor do meu cadáver
Gelado choravam, não sabiam um terço da dor que por
Anos carreguei.
A dor que minha morte causou a algumas
Pessoas, a mim nada mais era do que um
Alívio. Alívio de uma vida que já não mais
Existia, de uma admoesta deliberada inteiramente
Aos outros.
Esse logro iniciou-se há dois anos numa noite
Fria, eu estava pândega, esse foi o verdadeiro luto…
Da minha vida. Minha vida não esgotou-se em uma
Avenida, cercada por uma ponte a ruar com oito
Rodas de um caminhão
A última gota de vida que restava-se extinguiu-se
Naquela noite de diz 25/08, com gritos, olhares de desejo, tapas
A dor… a dor aquela foi a dor que tirou a alma que existia no
Meu corpo, e por fim meu estupro.

AUTOR: LUCAS DA CONCEIÇÃO
Hoje vejo que minha vida é a ruar
Então queria perscrutar meu coração
Porém sempre pachorrento e tênul
Porém fui atrás de ser pândego
Em uma das minhas preces
Sempre me sentindo supérfluo
Quando finalmente achei
Acordei do coma

AUTOR: WELLINGTON SOARES
Erros lógicos
Óbvio, cada letra em
Rap é um código
Sórdido
Psicografado som
Sólido, Súbito
Nunca fui de fazer
Som para público
Verso meu universo
Peço que
Entenda o meu
Mundo!!

AUTORA: KAREN
Lá ia o janota pela avenida, quando avistou a frugal moradia da amada do seu coração. Todo pândego resolveu perscrutar pelas janelas se ela estava em casa, inesperadamente apareceu na janela o avô da menina. Percebendo que ele era um velho pachorrento, fez-se de pacóvio e começou a engodar o senhor que, apesar de taciturno era muito esperto e lhano e disse ao janota:
– Não é de minha balda meu caro jovem, mas preciso admoesta-lo: não engane o tênul coração da minha neta com palavras supérfluas.
Diante do inusitado o rapaz exclamou:
– Poxa, fiquei surpreso vejo que és uma sumidade.


A intenção é a de formar leitores críticos, capazes de questionar e comparar informações, para a formação de opinião e construção de conhecimento, contribuindo na sua visão e consequentemente participação no mundo. A atividade proporcionou maior autoconhecimento, já que os estudantes perceberam que tinham muita história para contar, muito mais do que podiam imaginar no primeiro encontro, quando relataram suas quase frustrantes experiências com os livros. O grupo ainda pode presenciar a paródia composta por estudantes da escola, a partir de uma competição interna.

No mural da Casa, previsto para o dia 30 de novembro, pretendemos organizar e expor todas as produções do semestre em forma de uma matéria televisiva, com apresentadores, repórteres e entrevistados enquanto protagonistas roubando a cena. O objetivo será o de fazer com que eles escrevam para dialogar com um possível leitor, com uma função social, caso contrário o texto não teria razão de existir. A interação real será feita durante o evento, durante a troca de experiências entre os possíveis telespectadores transeuntes divididos nos outros grupos.

“Essa semana foi muito pândega para mim por causa do cursinho que está começando. Eu aprendi várias palavras que eu nem sabia pronunciar […] Eu agora tenho um bom senso com o meu vocabulário” – Wellington Soares (participante do projeto).

É aí? Conseguiram compreender todos os textos? Se sim, parabéns pelo repertório linguístico, e viva a nossa tão rica língua portuguesa! Até a próxima!!

Texto por Louise Bogéa – UFPA/USP – Belém/Ribeirão Preto

Orientadora do grupo: Rebuscando o português: por uma neuroplasticidade diferente